Para ler ao som do Prelúdio de Bach – Suite Nº 1
Estou lembrando agora de todos estes dias em que quase penso em Carolina. Nestes dias em que a sua presença em minha mente é quase uma névoa tênue espalhada pelo calor e a luz do sol numa sorrateira tarde de inverno, mês de junho, destes raros dias de frio em que a sua impressão se dissipa às vezes no burburinho de algazarras de estudantes num final de período escolar. Dias de pura letargia, recheados aqui e ali de uma tênue lembrança. Uma curva qualquer do seu rosto, um gesto quase dito em uma frase prolongada num sorriso misterioso de Monalisa, minha Carolisa. Sorriso que eu repasso de cor e salteado em minha memória tentando decifrar em cada contração um significado, premonição de bons agouros, promessa de dias melhores com Carolina. E tudo isto, qualquer movimento dela que eu lembro nestes dias, tem ao fundo como trilha sonora Prelúdio de Bach no violoncelo, interminável e deliciosamente tocando nesta tarde gelada quando o vento sopra, varrendo e levantando confusamente folhas mortas pelo ar na rua de frente à minha janela.
Lembro nestes dias que eu rezo este meu mantra de querer e insistir em ser feliz, mesmo longe dela, e nesta reza repito sempre e sempre: “Hoje, só por hoje, eu quase não pensei em Carolina” e vou seguindo o meu auto-conselho de carólatra anônimo, convencido de que devo viver assim dia após dia, um dia de cada vez e amanhã, ponto ainda quase distante no futuro eu espero de novo poder rezar este velho mantra e repetir que, por mais este dia durante o dia inteiro, eu quase não pensei em Carolina e assim não respirei doído de saudade. Porque fora desta bolha confortável de baixa expectativa que eu criei, para proteger minha sanidade de não estar com Carolina nunca ainda e até o fim dos meus dias, só há o desvario, loucura doida do desânimo de deixar a alma ir embora aos poucos a cada gole de Carolina sorvendo por minhas veias para cada órgão do meu corpo, entorpecendo meus braços e pernas e nublando minha consciência de tanta negação da impossibilidade de viver sem ela.
E agora o que me parece é que as notas emitidas pelas cordas do violoncelo converteram-se em ritmos de uma trágica melodia, sentimentos de nunca-vou-ter-Carolina-então-de-que-vale-tanto-esta-vida e que se vá embora de vez a minha alma deixando aqui somente este corpo quase seco e oco.
Coisas assim que passam flechadas pela minha mente e que eu tento me esquivar em câmera lenta e me convencer que esta idéia fixa de dividir o mundo em dois hemisférios de noventa e nove por cento de Carolina e um por cento do resto é só mais uma fase nesta existência conturbada e doida. Que com o tempo e um pouco de chá de erva de Anticarolina, irei me curando devagar, extirpando pelos fluidos do meu corpo, macerado em carne e espírito, este desejo louco de encostar o rosto de Carolina no meu peito e só ficar observando calma e estaticamente que toda a luz tênue da tarde seja engolida lenta e inexoravelmente por esta noite longa de inverno e, de resto, sobre apenas nós dois ali no escuro e só o nada que existe em nossa volta e em todo lugar, quando Carolina está assim tão despachadamente encostada no meu peito e eu só ouvindo a sua respiração de leve soprando macio no pelo do meu braço. E que depois de amanhecer milhões e milhões de vezes, o Sol ficar vermelho e gigante, as estrelas mudarem de posição e a Lua se perder da Terra neste instante de eternidade de mim e Carolina, ela permaneça ainda ali soprando o pelo do meu braço, sem mundo nem universo algum ou nada que mereça minha atenção ou a dela; além do violoncelo tocado por algum ser celestial, ressoando eternamente o Prelúdio de Bach à nossa volta.
Agnaldo Garcia
Prelúdio de Bach - Suite Nº 1
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