“O amor é quando a gente mora um no outro”
Mario Quintana
“E então Laura se foi...”
Queria começar por esta frase porque neste momento é um desejo mais ou menos manifesto, destes que se mostram meio tímidos, querendo iludir uma predisposição arraigada em algum lugar aqui dentro, que eu vou deixando crescer convincente como um balão de ar prestes a explodir e ventar borrachas e verdades salivadas sobre esta vontade mentirosa de me convencer.
Mas o fato é que Laura nunca me deixou realmente.
Porque eu ainda sinto o cheiro que ela deixou impregnado no meu ombro da última vez que nos abraçamos e os seus cabelos molhados escorreram pela minha mão direita. Lembro da ondulação perfeita das suas costas quando a apoiei em pé diante de mim. Das minhas pernas trêmulas, arrepios na pele, frio na boca do estômago, coisas assim... Pedaços de lembranças em formato de retalho.
Lembro também de nós dois numa manhã, recostados na janela observando lá fora a chuva despencando, folhas de árvore carregadas na enxurrada, raios e trovoadas e ela me falando sobre coisas bem baixinho enquanto eu me esforçava para ouvir o som da sua voz que se misturava ao barulho da água batendo no telhado. E só não consigo precisar na memória o tempo de duração destes eventos, ou dizer com certeza quando e se aconteceram. Fico assim insano e desorientado nestes dias. Porque de alguma forma o tempo flui descompassado e minha mente teima em confundir fantasia e realidade, quando ela sempre esta por perto.
E o espectro de Laura me olha às vezes e desdenhoso balbucia que cada pedaço destas recordações são apenas fantasia da minha mente. Ela me diz isso entre outras trivialidades que eu absorvo como se fossem palavras de grande sabedoria ditas por um monge tibetano, porque não sei por que, ela tem um encantamento que traz consigo desde o início dos meus tempos, que foi quando ela passou a existir em minha consciência: o poder de me fazer vê-la através de lentes de aumento.
Só não posso imaginar o que ela ainda faz aqui comigo. Bem aqui dentro, no oco seco do vaso, deste artefato de barro podre e mal cozido que me tornei. Mas o fato é que ela insiste em ficar. Mesmo quando acordo de manhã e me escondo recolhendo cabeça e membros dentro desta armadura impenetrável de casca de tartaruga que forjei dos dias em que o mundo fica úmido e chuvoso e até o sol se ressente de nascer. E embutido nesta casca, aguardo silenciosamente que este dia longo termine, que a semana enfadonha atropele ligeiro e passem rápidos estes fragmentos de ela e sem ela que eu chamo de minha vida...
E em dias melhores quando a cabeça não dói tanto de ressaca, tento compreender por que embora Laura não esteja aqui realmente, nunca nada se fez tão presente nem me permitiu enxergar, cheirar, tocar tudo a minha volta ou sentir a vida com tamanha intensidade. Como se eu apenas vivesse adormecido e só acordasse porque ela soprou em minhas narinas e através dela eu pudesse ver o mundo com meus sentidos ampliados.
Mas acabo sempre vencido pela minha incapacidade de compreender e atordoado, como alguém que acabou de ser atingido na cabeça com uma pedra, fico perambulando pela casa madrugada adentro. Eu, meu chinelo velho arranhando o piso, o tic-tac do relógio da sala e o lindo espectro de Laura que ainda continua sempre e sempre aqui e me olha no fundo dos olhos perguntando o que ela fez para que eu a amarrasse assim tão irremediavelmente presa a mim.
Assim, atordoado e ignorante, apenas a fito por horas a fio até que os meus olhos lacrimejem de cansaço. Recolho cabeça e membros dentro da casca impenetrável, aguardando impacientemente que o sono me alcance.
Eu, meu chinelo velho e o espectro de Laura...
Dedicado a todas as mulheres que eu conheço, neste dia tão especial
Agnaldo Garcia
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