quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Um Dia Ruim

“(...) Já não dirão que estou resignado

E perdi os melhores dias.

Dentro de mim, bem no fundo,

há reservas colossais de tempo,...”

Carlos Drummond de Andrade


Hoje decididamente amanheci de mal comigo e com o mundo.

Eram nove da manhã ou algo assim se mal me lembro porque a noite havia passado em mim. Os olhos ainda turvos mal conseguiram visualizar o relógio, quando acordei. Esfreguei os olhos estranhando que a claridade não houvesse invadido ainda o quarto pelas frestas da janela formando imagens quase indistintas do verde lá de fora e do azul do céu nas paredes brancas ao lado da minha cama.

Em dias ensolarados e preguiçosos, fico abotoado aos lençóis tentando imaginar qual imagem dá origem a cada borrão que aparece ou o que representa um vulto que atravessa a luz projetada. Vez em quando um pensamento me abduz e viajo por horas ou segundos apenas... Sei lá. Pensamentos que tomam formas de pessoas com as quais travo conversas mexendo os lábios, falando baixinho com ninguém ou comigo mesmo o que às vezes dá no mesmo...

Ai! Maldita torcicolo!

Antes tivesse ficado na posição fetal em que me encontrava por mais alguns minutos, horas, dias... Enfim... Movi o pescoço num movimento de contorção. Ele estalou e eu melhorei um pouco.

Abri a janela. O céu grosso de nuvens pesadas de azul-negro ameaçava a qualquer momento precipitar sobre a terra toneladas de água. Permaneci estático por algum tempo experimentando o vento úmido e o cheiro de terra molhada, típico destes dias chuvosos de dezembro. Respingos tênues trazidos pelo vento invadiram o quarto pelo vão da janela. Então eu a fechei. Os olhos acostumados à claridade me fizeram tatear a escuridão por causa da cegueira momentânea. Busquei o caminho para os outros cômodos da casa, certo de que a qualquer momento um chinelo mal colocado na noite anterior pudesse surgir de surpresa e comprometer de vez o meu equilíbrio capenga de sonolência me deixando ainda mais zangado. Tipo quando a gente dá com o dedo do pé no cantinho da porta e começa a ofender a mãe da pobre madeira morta.

Não quero falar hoje, por isso evito qualquer forma de contato humano. Passo pela cozinha rezando para que ninguém me note. Que eu seja invisível! Palavras são inoportunas quando não se tem nada de agradável a dizer. Eu podia gritar um palavrão qualquer, só para extravasar. Entretanto nem isso... O que eu quero mesmo neste dia-noite é ficar aqui no canto escuro da sala com a cortina fechada, tomando este café preto e quando ele acabar eu vou simplesmente deixar a xícara ao lado e ficar espreguiçadamente recostado, com a bunda presa ao sofá. Só arquivando boas lembranças na memória. Como em “O Velho e o Mar” de Hemingway quando Santiago conversa com o menino que o ajudava, ele quase não menciona os oitenta dias em que não pescou um só peixe. Ao invés disso sempre rememora as pescarias bem sucedidas onde apanhou enormes pescados.

Mas hoje eu não quero falar!

Só quero ficar aqui recostado no meu canto, mosqueando estes pensamentos, digerindo memórias destes dias ruins cujas reminiscências escorrem pela alma tal qual a enxurrada desta chuva que cai lá fora. Que a água leve pelo bueiro estas lembranças.

Estes dias têm sido sempre assim, indigestos. Mastigo-os e os engulo mesmo que eles me causem ânsias de vômito.

Ainda bem ou não que nada dure para sempre, nem mesmo esses dias ou outros melhores. Nem alguns bodes que a gente cria de vez em quando e esquece em algum buraco no fundo da memória. E quando pensamos que estamos livres eles aparecem feito piolhos ou como àquele pó da casa que todo dia varremos para fora de nossa existência sabendo que amanhã outros tais estarão nos mesmos lugares.

Estou me sentindo velho hoje, cheio de gavetas. Acordei com cento e dez anos, dois meses e alguns dias. Gavetas cheias de bugigangas empoeiradas e papéis velhos que a gente vai acumulando desleixadamente porque ou tem dó ou preguiça de jogar fora. De onde a gente de vez em quando fuça ideias antiquadas, ainda de outras eras.

Meus velhos ossos doem e se partem e minha artrite está acabando comigo. Por isso a posição fetal na cama quando acordei. Porque paradoxalmente quando se envelhece parte de você volta a ser criança. Até ontem ainda, eu era só um adolescente, pensando na Fulana como Drummond. Mas hoje eu me sinto velho como ele neste trecho de poema: “Sinto que o tempo sobre mim abate sua mão pesada. Rugas, dentes, calva... Uma aceitação maior de tudo, e o medo de novas descobertas...”

Hoje eu não quero descobrir nada, saber nada, só simplesmente aceitar que eu posso ficar um dia inteiro assim encruado dentro de mim mesmo, como o velho Santiago no mar. Sozinho, já que é assim que a gente nasce. E assim também a gente morre. O mar é a metáfora da vida. Nele estamos sós num barco arriscando ir cada vez mais longe da costa sempre atrás de um grande peixe. E depois, se o pegamos, vêm os tubarões e os devoram, deixando-nos apenas os ossos, além de um orgulho besta e a exaustão pela luta vã...




Agnaldo Garcia