sábado, 27 de março de 2010

Prelúdio de Bach para Carolina

Para ler ao som do Prelúdio de Bach – Suite Nº 1

Estou lembrando agora de todos estes dias em que quase penso em Carolina. Nestes dias em que a sua presença em minha mente é quase uma névoa tênue espalhada pelo calor e a luz do sol numa sorrateira tarde de inverno, mês de junho, destes raros dias de frio em que a sua impressão se dissipa às vezes no burburinho de algazarras de estudantes num final de período escolar. Dias de pura letargia, recheados aqui e ali de uma tênue lembrança. Uma curva qualquer do seu rosto, um gesto quase dito em uma frase prolongada num sorriso misterioso de Monalisa, minha Carolisa. Sorriso que eu repasso de cor e salteado em minha memória tentando decifrar em cada contração um significado, premonição de bons agouros, promessa de dias melhores com Carolina. E tudo isto, qualquer movimento dela que eu lembro nestes dias, tem ao fundo como trilha sonora Prelúdio de Bach no violoncelo, interminável e deliciosamente tocando nesta tarde gelada quando o vento sopra, varrendo e levantando confusamente folhas mortas pelo ar na rua de frente à minha janela.

Lembro nestes dias que eu rezo este meu mantra de querer e insistir em ser feliz, mesmo longe dela, e nesta reza repito sempre e sempre: “Hoje, só por hoje, eu quase não pensei em Carolina” e vou seguindo o meu auto-conselho de carólatra anônimo, convencido de que devo viver assim dia após dia, um dia de cada vez e amanhã, ponto ainda quase distante no futuro eu espero de novo poder rezar este velho mantra e repetir que, por mais este dia durante o dia inteiro, eu quase não pensei em Carolina e assim não respirei doído de saudade. Porque fora desta bolha confortável de baixa expectativa que eu criei, para proteger minha sanidade de não estar com Carolina nunca ainda e até o fim dos meus dias, só há o desvario, loucura doida do desânimo de deixar a alma ir embora aos poucos a cada gole de Carolina sorvendo por minhas veias para cada órgão do meu corpo, entorpecendo meus braços e pernas e nublando minha consciência de tanta negação da impossibilidade de viver sem ela.

E agora o que me parece é que as notas emitidas pelas cordas do violoncelo converteram-se em ritmos de uma trágica melodia, sentimentos de nunca-vou-ter-Carolina-então-de-que-vale-tanto-esta-vida e que se vá embora de vez a minha alma deixando aqui somente este corpo quase seco e oco.

Coisas assim que passam flechadas pela minha mente e que eu tento me esquivar em câmera lenta e me convencer que esta idéia fixa de dividir o mundo em dois hemisférios de noventa e nove por cento de Carolina e um por cento do resto é só mais uma fase nesta existência conturbada e doida. Que com o tempo e um pouco de chá de erva de Anticarolina, irei me curando devagar, extirpando pelos fluidos do meu corpo, macerado em carne e espírito, este desejo louco de encostar o rosto de Carolina no meu peito e só ficar observando calma e estaticamente que toda a luz tênue da tarde seja engolida lenta e inexoravelmente por esta noite longa de inverno e, de resto, sobre apenas nós dois ali no escuro e só o nada que existe em nossa volta e em todo lugar, quando Carolina está assim tão despachadamente encostada no meu peito e eu só ouvindo a sua respiração de leve soprando macio no pelo do meu braço. E que depois de amanhecer milhões e milhões de vezes, o Sol ficar vermelho e gigante, as estrelas mudarem de posição e a Lua se perder da Terra neste instante de eternidade de mim e Carolina, ela permaneça ainda ali soprando o pelo do meu braço, sem mundo nem universo algum ou nada que mereça minha atenção ou a dela; além do violoncelo tocado por algum ser celestial, ressoando eternamente o Prelúdio de Bach à nossa volta.

Agnaldo Garcia

Prelúdio de Bach - Suite Nº 1

sábado, 20 de março de 2010

Seres Estelares


“E eu vos direi:
Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas”

Olavo Bilac


Ciência para mim é poesia pura! Digo isto com a convicção de quem desde garoto, na década de 70, ficava hipnotizado diante da televisão assistindo Perdidos no Espaço, Terra de Gigantes e as estripulias do Capitão James T. Kirk e seus famosos escudeiros, o médico Dr. McCoy e o alienígena orelhudo Spock em Jornada Nas Estrelas indo “audaciosamente onde nenhum homem jamais esteve”. Daí a mágica se fez e uma semente do eterno projeto de cientista que eu viria a ser por toda a vida foi plantada no solo fértil da minha imaginação infantil. Ali, naqueles primórdios, nascia o professor de física. Uma vocação, vontade expressa da alma, que se consolidou na adolescência quando a recém-nascida revista de divulgação científica “Superinteressante” lançou, como uma bomba atômica que atingiu os meus sentidos, alguns artigos sobre a teoria da relatividade. Pirei! Como assim? Que história é essa de tempo relativo? Como alguém só por viajar muito rápido pelo espaço poderia voltar um dia à Terra e estar mais jovem que seu filho? Máquinas do tempo, universos paralelos... Doideira completa, viagem dos sentidos...

E as estrelas então? Nada mais poético do que estes gigantescos astros brilhantes. Milhares e milhares de versos foram escritos enaltecendo sua beleza. Mas uma simples descrição delas, por si só constitui-se numa fantástica narrativa lírica. Porque uma estrela é como um ser vivo: Como nós, elas nascem um dia fulgurantes e vivem bilhões de anos “pensando” que vão viver para sempre. Seu nascimento ocorre em função da gravidade que provoca um ajuntamento de gases numa formação chamada Nebulosa. Nós, seres humanos, nascemos depois de uma gravidez em conseqüência de um ajuntamento nebuloso que as pessoas chamam de vários nomes: amor, paixão, às vezes tesão, ou só safadeza mesmo...

Mal chegamos a este mundo e começamos a sofrer as pressões. Devemos crescer e ganhar peso, depois somos compelidos a engatinhar e andar o mais rápido possível para orgulho de nossos pais. A primeira palavra “papa” ou “mamã”, a primeira dentição e ai chegamos a pressão de seres sociais, desprotegidos do aconchego do lar, convivendo e aprendendo com pessoas que até então não tínhamos a menor intimidade , no heterogêneo ambiente escolar. Aprendemos a ler e escrever; roubamos o primeiro beijo de uma garotinha que ainda tem ranho no nariz, nos apaixonamos pela primeira vez e encaramos ou não o vestibular. Depois saímos apreensivos em busca do primeiro emprego, namoramos sério ou não e casamos. Temos filhos que receberão muito amor e nos darão em troca o mesmo, muita dor de cabeça e depois netos. A gravidade, força implacável, puxará nossos corpos para baixo sempre, até a derradeira e maior profundidade, a sete palmos, e até na hora de morrermos seremos pressionados e compelidos a lutar sempre pela vida mesmo que talvez ela já não valha mais a pena de ser vivida porque até a pressão atmosférica tornou-se um fardo insuportável de carregar.

Uma estrela, assim que se forma, também é pressionada e mantém estável, mas precário equilíbrio desta pressão. Duas forças lutam para subjugá-la: A gravidade “tenta” esmagá-la contra si mesma e a pressão gerada pela reação nuclear de suas entranhas tende a expandi-la de modo que a sua matéria se espalhe pelo Universo. No caso do nosso Sol, a atividade nuclear o fará crescer, assim como nós crescemos na vida em alguns aspectos com o passar dos anos. Ele se tornará uma fria, cansada e gigante estrela vermelha daqui a cinco bilhões de anos. Com quase todo o seu combustível esgotado, o Sol perderá saúde e equilíbrio. Já não será quente o suficiente para conter a cruel gravidade que acabará por esmagá-lo. Este colapso, um espetáculo fabuloso que infelizmente não estaremos aqui para presenciar, fará com que a sua matéria seja lançada pelo universo. Assim morrerá nossa estrela.

Outra semelhança conosco. Um dia nossas obras, nossos atos e gestos, serão espalhados pelo mundo e só sobrarão ecos do que fomos.

E o que mais, além disso, restará de nós e do Sol?

De nós, quiçá um pequeno brilho nos corações e mentes daqueles que conosco conviveram e que, com alguns dos quais partilhamos verdadeiros sentimentos. Também nossos restos mortais, idéias e atitudes serão compartilhadas por outros seres vivos dando continuidade à grande corrente da vida.

As estrelas, como o Sol quando morrem irradiam a matéria pesada de vários elementos que formou a partir do hidrogênio. Estes elementos como o carbono, oxigênio, ferro e outros, se espalharão pelo Universo e farão parte de outras estrelas e planetas num novo sistema solar, de onde poderá surgir nova vida.

Daí a derradeira, contundente e maravilhosa das idéias poéticas sobre a ciência e o Universo: Quando nossa consciência findar e nosso invólucro corpóreo se dissolver, os bilhões e bilhões de átomos que nos formam se difundirão pelo planeta e depois se espalharão pelo universo expelidos pela explosão solar. E então, a matéria que nos compôs um dia poderá fazer parte de outros seres vivos. Desta maneira, seremos eternos reciclados, poeira de estrelas...

Poesia pura!

Agnaldo Garcia

quinta-feira, 18 de março de 2010

Sem Ana, Blues

Quando Ana me deixou - essa frase ficou na minha cabeça, de dois jeitos - e depois que Ana me deixou. Sei que não é exatamente uma frase, só um começo de frase, mas foi o que ficou na minha cabeça. Eu pensava assim: quando Ana me deixou - e essa não-continuação era a única espécie de não continuação que vinha. Entre aquele quando e aquele depois, não havia nada mais na minha cabeça nem na minha vida além do espaço em branco deixado pela ausência de Ana, embora eu pudesse preenchê-lo - esse espaço branco sem Ana - de muitas formas, tantas quantas quisesse, com palavras ou ações. Ou não-palavras e não-ações, porque o silêncio e a imobilidade foram dois dos jeitos menos dolorosos que encontrei, naquele tempo, para ocupar meus dias, meu apartamento, minha cama, meus passeios, meus jantares, meus pensamentos, minhas trepadas e todas essas outras coisas que formam uma vida com ou sem alguém como Ana dentro dela.

Quando Ana me deixou, eu fiquei muito tempo parado na sala do apartamento, cerca de oito horas da noite, com o bilhete dela nas mãos. No horário de verão, pela janela aberta da sala, à luz das oito horas da noite podiam-se ainda ver uns restos dourados e vermelho deixados pelo sol atrás dos edifícios, nos lados de Pinheiros. Eu fiquei muito tempo parado no meio da sala do apartamento, o último bilhete de Ana nas mãos, olhando pela janela os dourados e o vermelho do céu. E lembro que pensei agora o telefone vai tocar, e o telefone não tocou, e depois de algum tempo em que o telefone não tocou, e podia ser Lucinha da agência ou Paulo do cineclube ou Nelson de Paris ou minha mãe do Sul, convidando para jantar, para cheirar pó, para ver Nastassia Kinski nua, pergunrando que tempo fazia ou qualquer coisa assim, então pensei agora a campainha vai tocar. Podia ser o porteiro entregando alguma dessas criancinhas meio monstros de edifício, que adoram apertar as campainhas alheias, depois sair correndo. Ou simples engano, podia ser. Mas a campainha também não tocou, e eu continuei por muito tempo sem salvação parado ali no centro da sala que começava a ficar azulada pela noite, feito o interior de um aquário, o bilhete de Ana nas mãos, sem fazer absolutamente nada além de respirar.

Depois que Ana me deixou - não naquele momento exato em que estou ali parado, porque aquele momento exato é o momento-quando, não o momento-depois, e no momento-quando não acontece nada dentro dele, somente a ausência da Ana, igual a uma bolha de sabão redonda, luminosa, suspensa no ar, bem no centro da sala do apartamento, e dentro dessa bolha é que estou parado também, suspenso também, mas não luminoso, ao contrário, opaco, fosco, sem brilho e ainda vestido com um dos ternos que uso para trabalhar, apenas o nó da gravata levemente afrouxado, porque é começo de verão e o suor que escorre pelo meu corpo começa a molhar as mãos e a dissolver a tinta das letras no bilhete de Ana - depois que Ana me deixou, como ia dizendo, dei para beber, como é de praxe.

De todos aqueles dias seguintes, só guardei três gostos na boca - de vodca, de lágrima e de café. O de vodca, sem água nem limão ou suco de laranja, vodca pura, transparente, meio viscosa, durante as noites em que chegava em casa e, sem Ana, sentava no sofá para beber no último copo de cristal que sobrara de uma briga. O gosto de lágrimas chegava nas madrugadas, quando conseguia me arrastar da sala para o quarto e me jogava na cama grande, sem Ana, cujos lençóis não troquei durante muito tempo porque ainda guardavam o cheiro dela, e então me batia e gemia arranhando as paredes com as unhas, abraçava os travesseiros como se fossem o corpo dela, e chorava e chorava e chorava até dormir sonos de pedra sem sonhos. O gosto de café sem açúcar acompanhava manhãs de ressaca e tardes na agência, entre textos de publicidade e sustos a cada vez que o telefone tocava. Porque no meio dos restos dos gostos de vodca, lágrima e café, entre as pontadas na cabeça, o nojo da boca do estômago e os olhos inchados, principalmente às sextas-feiras, pouco antes de desabarem sobre mim aqueles sábados e domingos nunca mais com Ana, vinha a certeza de que, de repente, bem normal, alguém diria telefone-para-você e do outro lado da linha aquela voz conhecida diria sinto-falta-quero-voltar. Isso nunca aconteceu.

O que começou a acontecer, no meio daquele ciclo do gosto de vodca, lágrima e café, foi mesmo o gosto de vômito na minha boca. Porque no meio daquele momento entre a vodca e a lágrima, em que me arrastava da sala para o quarto, acontecia às vezes de o pequeno corredor do apartamento parecer enorme como o de um transatlântico em plena tempestade. Entre a sala e o quarto, em plena tempestade, oscilando no interior do transatlântico, eu não conseguia evitar de parar à porta do banheiro, no pequeno corredor que parecia enorme. Eu me ajoelhava com cuidado no chão, me abraçava na privada de louça amarela com muito cuidado, com tanto cuidado como se abraçasse o corpo ainda presente de Ana, guardava prudente no bolso os óculos redondos de armação vermelhinha, enfiava devagar a ponta do dedo indicador cada vez mais fundo na garganta, até que quase toda a vodca, junto com uns restos de sanduíches que comera durante o dia, porque não conseguia engolir quase mais nada, naqueles dias, e o gosto dos muitos cigarros se derramassem misturados pela boca dentro do vaso de louça amarela que não era o corpo de Ana. Vomitava e vomitava de madrugada, abandonado no meio do deserto como um santo que Deus largou em plena penitência - e só sabia perguntar por que, por que, por que, meu Deus, me abandonaste? Nunca ouvi a resposta.

Um pouco depois desses dias que não consigo recordar direito - nem como foram, nem quantos foram, porque deles só ficou aquele gosto de vômito, misturados, no final daquela fase, ao gosto das pizzas, que costumava perdir por telefone, principalmente nos fins-de-semana, e que amanheciam abandonadas na mesa da sala aos sábados, domingos e segundas, entre cinzeiros cheios e guardanapos onde eu não conseguia decifrar as frases que escrevera na noite anterior, e provavelmente diziam banalidades, como volta-para-mim-Ana ou eu-não-consigo-viver-sem-você, palavras meio derretidas pelas manchas do vinho, pela gordura das pizzas -, depois daqueles dias começou o tempo em que eu queria matar Ana dentro de tudo aquilo que era eu, e que incluía aquela cama, aquele quarto, aquela sala, aquela mesa, aquele apartamento, aquela vida que tinha se tornado a minha depois que Ana me deixou.

Mandei para a lavanderia os lençóis verde-clarinhos que ainda guardavam o cheiro de Ana - e seria cruel demais para mim lembrar agora que cheiro era esse, aquele, bem na curva onde o pescoço se transforma em ombro, um lugar onde o cheiro de nenhuma pessoa é igual ao cheiro de outra pessoa -, mudei os móveis de lugar, comprei um Kutka e um Gregório, um forno microondas, fitas de vídeo, duas dúzias de copos de cristal, e comecei a trazer outras mulheres para casa. Mulheres que não eram Ana, mulheres que jamais poderiam ser Ana, mulheres que não tinham nem teriam nada a ver com Ana. Se Ana tinha os seios pequenos e duros, eu as escolhia pelos seios grandes e moles, se Ana tinha os cabelos quase louros, eu as trazia de cabelos pretos, se Ana tivesse a voz rouca eu a selecionava pelas vozes estridentes que gemiam coisas vulgares quando estávamos trepando, bem diversas das que Ana dizia ou não dizia, ela nunca dizia nada além de amor-amor ou meu-menino-querido, passando dos dedos da mão direita na minha nuca e os dedos da mão esquerda pelas minhas costas. Vieram Gina, a das calcinhas pretas, e Lilian, a dos olhos verdes frios, e Beth, das coxas grossas e pés gelados, e Marilene, que fumava demais e tinha um filho, e Mariko, a nissei que queria ser loura, e também Marta, Luiza, Creuza, Júlia, Débora, Vivian, Paula, Teresa, Luciana, Solange, Maristela, Adriana, Vera, Silvia, Neusa, Denise, Karina, Cristina, Marcia, Nadir, Aline e mais de 15 Marias, e uma por uma das garotas ousadas da Rua Augusta, com suas botinhas brancas e minissaia de couro, e destas moças que anunciam especialidades nos jornais. Eu acho que já vim aqui uma vez, alguma dizia, e eu falava não lembro, pode ser, esperando que tirasse a roupa enquanto eu bebia um pouco mais para depois tentar entrar nela, mas meu pau quase nunca obedecia, então eu afundava a cabeça nos seus peitos e choramingava babando sabe, depois que Ana me deixou eu nunca mais, e mesmo quando meu pau finalmente endurecia, depois que eu conseguia gozar seco ardido dentro dela, me enxugar com alguma toalha e expulsá-la com um cheque cinco estrelas, sem cruzar ¿ então eu me jogava de bruços na cama e pedia perdão à Ana por traí-la assim, com aquelas vagabundas. Trair Ana, que me abandonara, doía mais que ela ter me abandonado, sem se importar que eu naufragasse toda noite no enorme corredor de transatlântico daquele apartamento em plena tempestade, sem salva-vidas.

Depois que Ana me deixou, muitos meses depois, veio o ciclo das anunciações, do I Ching, dos búzios, cartas de Tarot, pêndulos, vidências, números e axés ¿ ela volta, garantiam, mas ela não voltava - e veio então o ciclo das terapias de grupo, dos psicodramas, dos sonhos junguianos, workshops transacionais, e veio ainda o ciclo da humildade, com promessas à Santo Antônio, velas de sete dias, novenas de Santa Rita, donativos para as pobres criancinhas e velhinhos desamparados, e veio depois o ciclo do novo corte de cabelos, da outra armação para os óculos, guarda-roupa mais jovem, Zoomp, Mister Wonderful, musculação, alongamento, yoga, natação, tai-chi, halteres, cooper, e fui ficando tão bonito e renovado e superado e liberado e esquecido dos tempos em que Ana ainda não tinha me deixado que permiti, então, que viesse também o ciclo dos fins de semana em Búzios, Guarajá ou Monte Verde e de repente quem sabe Carla, mulher de Vicente, tão compreensiva e madura, inesperadamente, Mariana, irmã de Vicente, transponível e natural em seu fio dental metálico, por que não, afinal, o próprio Vicente, tão solícito na maneira como colocava pedras de gelo no meu escocês ou batia outra generosa carreira sobre a pedra de ágata, encostando levemente sua musculosa coxa queimada de sol e o windsurf na minha musculosa coxa também queimada de sol e windsurf. Passou-se tanto tempo depois que Ana me deixou, e eu sobrevivi, que o mundo foi se tornando ao poucos um enorme leque escancarado de mil possibilidades além de Ana. Ah esse mundo de agora, assim tão cheio de mulheres e homens lindos e sedutores interessantes e interessados em mim, que aprendi o jeito de também ser lindo, depois de todos os exercícios para esquecer Ana, e também posso ser sedutor com aquele charme todo especial de homem-quase-maduro-que-já-foi-marcado-por-um-grande-amor-perdido, embora tenha a delicadeza de jamais tocar no assunto. Porque nunca contei à ninguém de Ana. Nunca ninguém soube de Ana em minha vida. Nunca dividi Ana com ninguém. Nunca ninguém jamais soube de tudo isso ou aquilo que aconteceu quando e depois que Ana me deixou.

Por todas essas coisas, talvez, é que nestas noites de hoje, tanto tempo depois, quando chego do trabalho por volta das oito horas da noite e, no horário de verão, pela janela da sala do apartamento ainda é possível ver restos de dourados e vermelhos por trás dos edifícios de Pinheiros, enquanto recolho os inúmeros recados, convites e propostas da secretária eletrônica, sempre tenho a estranha sensação, embora tudo tenha mudado e eu esteja muito bem agora, de que este dia ainda continua o mesmo, como um relógio enguiçado preso no mesmo momento - aquele. Como se quando Ana me deixou não houvesse depois, e eu permanecesse até hoje aqui parado no meio da sala do apartamento que era o nosso, com o último bilhete dela nas mãos. A gravata levemente afrouxada no pescoço, fazia e faz tanto calor que sinto o suor escorrer pelo corpo todo, descer pelo peito, pelos braços, até chegar aos pulsos e escorregar pela palma das mãos que seguram o último bilhete de Ana, dissolvendo a tinta das letras com que ela compôs palavras que se apagam aos poucos, lavadas pelo suor, mas que não consigo esquecer, por mais que o tempo passe e eu, de qualquer jeito e sem Ana, vá em frente. Palavras que dizem coisas duras, secas, simples, arrevogáveis. Que Ana me deixou, que não vai voltar nunca, que é inútil tentar encontrá-la, e finalmente, por mais que eu me debata, que isso é para sempre. Para sempre então, agora, me sinto uma bolha opaca de sabão, suspensa ali no centro da sala do apartamento, à espera de que entre um vento súbito pela janela aberta para levá-la dali, essa bolha estúpida, ou que alguém espete nela um alfinete, para que de repente estoure nesse ar azulado que mais parece o interior de um aquário, e desapareça sem deixar marcas.

Caio Fernando Abreu

quinta-feira, 11 de março de 2010

Quem És Tu

Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?

A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.

A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas.

Sophia de Mello Breyner Anderson

segunda-feira, 8 de março de 2010

O Espectro de Laura

“O amor é quando a gente mora um no outro”

Mario Quintana

“E então Laura se foi...”

Queria começar por esta frase porque neste momento é um desejo mais ou menos manifesto, destes que se mostram meio tímidos, querendo iludir uma predisposição arraigada em algum lugar aqui dentro, que eu vou deixando crescer convincente como um balão de ar prestes a explodir e ventar borrachas e verdades salivadas sobre esta vontade mentirosa de me convencer.

Mas o fato é que Laura nunca me deixou realmente.

Porque eu ainda sinto o cheiro que ela deixou impregnado no meu ombro da última vez que nos abraçamos e os seus cabelos molhados escorreram pela minha mão direita. Lembro da ondulação perfeita das suas costas quando a apoiei em pé diante de mim. Das minhas pernas trêmulas, arrepios na pele, frio na boca do estômago, coisas assim... Pedaços de lembranças em formato de retalho.

Lembro também de nós dois numa manhã, recostados na janela observando lá fora a chuva despencando, folhas de árvore carregadas na enxurrada, raios e trovoadas e ela me falando sobre coisas bem baixinho enquanto eu me esforçava para ouvir o som da sua voz que se misturava ao barulho da água batendo no telhado. E só não consigo precisar na memória o tempo de duração destes eventos, ou dizer com certeza quando e se aconteceram. Fico assim insano e desorientado nestes dias. Porque de alguma forma o tempo flui descompassado e minha mente teima em confundir fantasia e realidade, quando ela sempre esta por perto.

E o espectro de Laura me olha às vezes e desdenhoso balbucia que cada pedaço destas recordações são apenas fantasia da minha mente. Ela me diz isso entre outras trivialidades que eu absorvo como se fossem palavras de grande sabedoria ditas por um monge tibetano, porque não sei por que, ela tem um encantamento que traz consigo desde o início dos meus tempos, que foi quando ela passou a existir em minha consciência: o poder de me fazer vê-la através de lentes de aumento.

Só não posso imaginar o que ela ainda faz aqui comigo. Bem aqui dentro, no oco seco do vaso, deste artefato de barro podre e mal cozido que me tornei. Mas o fato é que ela insiste em ficar. Mesmo quando acordo de manhã e me escondo recolhendo cabeça e membros dentro desta armadura impenetrável de casca de tartaruga que forjei dos dias em que o mundo fica úmido e chuvoso e até o sol se ressente de nascer. E embutido nesta casca, aguardo silenciosamente que este dia longo termine, que a semana enfadonha atropele ligeiro e passem rápidos estes fragmentos de ela e sem ela que eu chamo de minha vida...

E em dias melhores quando a cabeça não dói tanto de ressaca, tento compreender por que embora Laura não esteja aqui realmente, nunca nada se fez tão presente nem me permitiu enxergar, cheirar, tocar tudo a minha volta ou sentir a vida com tamanha intensidade. Como se eu apenas vivesse adormecido e só acordasse porque ela soprou em minhas narinas e através dela eu pudesse ver o mundo com meus sentidos ampliados.

Mas acabo sempre vencido pela minha incapacidade de compreender e atordoado, como alguém que acabou de ser atingido na cabeça com uma pedra, fico perambulando pela casa madrugada adentro. Eu, meu chinelo velho arranhando o piso, o tic-tac do relógio da sala e o lindo espectro de Laura que ainda continua sempre e sempre aqui e me olha no fundo dos olhos perguntando o que ela fez para que eu a amarrasse assim tão irremediavelmente presa a mim.

Assim, atordoado e ignorante, apenas a fito por horas a fio até que os meus olhos lacrimejem de cansaço. Recolho cabeça e membros dentro da casca impenetrável, aguardando impacientemente que o sono me alcance.

Eu, meu chinelo velho e o espectro de Laura...

Dedicado a todas as mulheres que eu conheço, neste dia tão especial

Agnaldo Garcia

domingo, 7 de março de 2010

A Rua

A rua é um rio de passos e de vozes,
Um rio terrível que me vai levando
Mas estou só, como se está na infância...
Ou quando a morte vai se aproximando

No ar, agora, que distante aroma?
Decerto eu sem saber pensei em ti...
E um vôo de andorinha na distância
É a minha saudade que eu te mando.

Mas tudo, nesse tumultuoso rio,
Não fica nunca ao fundo da lembrança
Como no seio azul de uma redoma...

Tudo se afasta nessa correnteza
Onde uma flor, às vezes fica presa
E um claro riso sobre as águas dança!

Mario Quintana

quinta-feira, 4 de março de 2010

Dias Assim

Há dias miraculosos e raros

Dias generosos de céu azul

Que surgem e impressionam nossas retinas

Noutros, nuvens cinzentas cobrem o céu

E contagiam o espírito de nostalgia

Dias em que noites e tardes se confundem

Quando apenas aguardamos

Silenciosamente que passem

Há dias que fluem como rios de águas calmas

Outros arremetem violentos por desfiladeiros

Arrancam raízes, erodem o mundo à sua volta

Há dias em que mergulhamos fundo

Noutros só arranhamos a superfície

Dias de agouros ruins, outros de bons ventos

Há sempre dias assim...

Agnaldo Garcia - 03/03/2010

quarta-feira, 3 de março de 2010

Aldebaran, Minha Estrela

O que sei dizer é que sem você não sou muito ou quase nada.

Porque me parece agora estranhamente que todas as coisas contidas neste universo, somente estão onde estão para que você possa existir. Para que neste momento você possa estar reluzindo em algum canto deste planeta e a sua aura aqui me enchendo de saudade. A tua imagem surgindo em minha mente é como um oásis no deserto escaldante que é esta vida. É como uma ilha paradisíaca onde o vento sopra as palmeiras e mexe a areia de um mar azul de depois da inquietude e desespero.

E eu o que poderia ser para você? Quiçá um sol, destes centenas de vezes maior e mais brilhante que o nosso. Uma estrela imensa daquelas de nome majestoso.

Uma Aldebaran.

Mas assim longe de você, sou no máximo, potencial de estrela. Massa inerte, esperando um click, um acender deste forno e ativar a reação nuclear que deflagrara a explosão e gerará a verdadeira vida: brilho intenso de uma estrela gigante. Uma linda estrela de vida imponderavelmente longa e mais quente que o Sol. Sinto que poderíamos ser um imenso sistema binário. Duas estrelas gêmeas infinitamente no tempo circundando uma a outra, inundando o universo à nossa volta de luz e partilhando nossa matéria.

Não sei precisar o instante em que você nasceu neste meu universo. Mas como toda a estrela você surgiu de uma imensa nuvem de gás, minha Nebulosa de Órion. Teu espírito, uma pequena e preciosa porção de matéria que existia no começo foi aos poucos atraindo massa por causa de tua gravidade e assim você tomou corpo e foi crescendo dentro de mim até ocupar um espaço imenso e me fez sentir assim tomado por completo de maneira que, preenchido pela tua essência me senti como o poeta na “fatalidade insigne do nosso encontro... de um só golpe, perdido e salvo”.

E assim eu matéria escura que sou sem você me vi atraído mais e mais para a tua órbita e passei a girar em torno numa elipse constante como um cometa. E como um bólido simples que sou, tenho apenas a beleza do brilho que o reflexo da tua luz provoca em minha cauda que se alonga quando a minha poeira é atraída e dispersada pela tua força gravitacional. Mas quando me afasto volto a ser matéria escura novamente e sigo perambulando por essa existência cósmica na ânsia e ilusão de nossa próxima aproximação.

Aldebaran minha estrela, você é visível da Terra.

Hoje, que é inverno lá fora e aqui dentro, posso te ver no escuro do início da noite, brilhando forte e azul, numa linha reta à esquerda das Três Marias.

E fica combinado assim minha lucina, mesmo que não queiras, que me tens a mim e à estrela que dou. Um gesto simbólico eu bem sei, posto que não posso dar aquilo que não me pertence. Mas sempre que eu olhar o céu e mirar Aldebaran verei a ti e lembrarei mesmo com tristeza, que estás a anos-luz de distância embora eu possa te ver para sempre, mesmo na mais negra escuridão das noites.

Agnaldo Garcia

Conto publicado no livro "Amor & Desamor" - Br Letras

http://www.camarabrasileira.com/amoredesamor.htm