domingo, 28 de fevereiro de 2010

4.1 Ladeira Abaixo

Se a vida é uma montanha-russa passar dos quarenta já é estar além do ponto mais alto sem possibilidade alguma de retorno. É certo então que teremos altos e baixos, mas definitivamente na média, é ladeira abaixo. Os cabelos recuam a cada dia e a testa aumenta. A memória nos deixa na mão muitas vezes naqueles momentos onde você encontra um conhecido na rua ou está concentrado numa daquelas provas importantes. O fôlego falta na metade do primeiro tempo daquela pelada. Ainda penso muito em coisas que pensava quando era mais jovem e tenho quase as mesmas vontades que tinha aos vinte e poucos anos. Mas é claro que nestes casos pensar e fazer são quase sempre ações verbais não correlacionáveis.

Há quarenta e um anos, enquanto o homem engatinhava fora da terra pisando na lua eu chegava a este mundo. Os Beatles tiravam a sua famosa foto de capa de disco atravessando uma rua de Londres e o Brasil era apenas bi-campeão mundial de futebol. A sociedade moderna adolescente queria mudar o mundo e os jovens brasileiros morriam em nome da democracia.

Mas “aqueles garotos que queriam mudar o mundo, agora assistem a tudo em cima do muro”, não é mesmo? Quando não estão ocupados escondendo dólares na cueca...

Amadurecemos... O mundo mudou... Só não sei se para melhor.

Aos quarenta e um anos já sabemos que verdadeiras amizades são demasiadamente raras e que quase sempre usamos este conceito levianamente. Sabemos que se era amor verdadeiro e superamos então nunca deveria ter sido assim chamado. Que as pessoas que mais nos são queridas ou as que mais nos querem bem, geralmente são aquelas que mais nos magoam, na maioria das vezes, mesmo que sem querer e que “... não importa em quantos pedaços seu coração foi partido, o mundo não pára para que você o conserte...”

Aos quarenta e um anos nem tudo, entretanto, é motivo de lamentação ou nostalgia. Ganhar a vida já não é uma batalha tão árdua, os filhos já estão ganhando asas... E vê-los ali, diante de você, seres humanos íntegros pessoas de bem sabendo que você contribuiu e muito para a formação do caráter deles, te enche de orgulho. Dos filhos também tenho esperança de coisas boas que estão por vir. Quem sabe netinhos, todos dignamente corintianos, zoando pela casa numa tarde de domingo?... Sim, apesar de tudo creio que a vida ainda pode reservar bons momentos.

Não é desprezar possibilidades ou exacerbar em excesso de otimismo. Sei que ocorrerão momentos tristes e, perdas de pessoas queridas serão inevitáveis. Nós nos reuniremos para chorá-las e a vida seguirá seu curso até o final: o derradeiro movimento na montanha.

Agnaldo Garcia

sábado, 27 de fevereiro de 2010

Um Dia

Ah, um dia...

Num desses dias invencíveis

Eu me levantarei cheio de fé

Grão de mostarda...

Você baterá em minha porta,

Caminharemos juntos pela areia

E o mar fluirá sobre nossos pés

Fagulhas de fogueira ganharão os ares

Num desses dias...

Agnaldo Garcia

Soneto 88

Quando me tratas mal e, desprezado,

Sinto que o meu valor vês com desdém,

Lutando contra mim, fico ao teu lado

E, inda perjuro, provo que és um bem.

Conhecendo melhor meus próprios erros,

A te apoiar te ponho a par da história

De ocultas faltas, onde estou enfermo;

Então, ao me perder, tens toda a glória.

Mas lucro também tiro desse ofício:

Curvando sobre ti amor tamanho,

Mal que me faço me traz benefício,

Pois o que ganhas duas vezes ganho.

Assim é o meu amor e a ti o reporto:

Por ti todas as culpas eu suporto.

William Shakespeare

Os Dragões São Eternos

Inspirado na crônica

“Os Dragões não Conhecem o Paraíso”

de Caio Fernando Abreu

Lua vermelha como fundo

Ao Dragão que voa,

Não duas coisas distintas

Mas uma só alma.”

O Dragão e a Lua Vermelha, Marco Milani

E foi assim um dia, de surpresa, sem indício de qualquer natureza, que um dragão passou a viver comigo.

Suspeito que não. Talvez ele estivesse já morando aqui há muito tempo.

Quem sabe já há alguns anos sem que eu entorpecido pelas manhãs de sono de sábado ou o tédio da espera da segunda-feira num domingo à noite pudesse tê-lo notado enquanto ele arrastava quase que silenciosamente as asas pela minha sala ou então bafejasse e chamuscasse, de leve, as teias de aranhas alojadas nos cantos deixando pequenos e imperceptíveis resquícios e odores de cinzas. E míope nos sentidos, só o percebi quando aos poucos senti que o peito me queimava como se estivesse próximo a uma fogueira, daquelas que a gente fazia nas noites, quando menino, para aquecer do frio enquanto brincava na rua.

Assim, ele veio e se instalou como um gato preguiçoso e arredio, daqueles que nos tomam como donos sem pedir a nossa permissão e bebem cerimoniosamente o leite que colocamos num prato no canto da sala sem um olhar sequer de agradecimento como geralmente fazem os cães. E sempre, fortuitamente, dando o ar de sua graça ele aparece, e eu identifico a sua chegada pelo ruído diferente do rufar de suas asas que se misturam com o barulho do vento quedando nas árvores. Aloja-se em casa e vai ficando, até que eu de cansaço lá pelas duas da matina e já com raiva do sono que irei curtir no dia seguinte, adormeça.

Mas um dia destes, o dragão me deixou por uns instantes. Do mesmo modo como sempre vem, foi-se sutilmente sem que eu quase não desse pela sua falta. E assim que notei a sua saída sem retorno previsto ou avisado, fiquei quietinho e fechei as janelas e portas deixando-me ficar encolhido num canto do sofá, com a televisão em baixo volume para que quando, se ele por acaso retornasse, imaginasse talvez que não houvesse ninguém em casa e então partisse novamente. Nos dias em que está comigo, ligo a TV às vezes, mas não consigo assisti-la; há muito não pratico esta trivial atividade ou outras não menos corriqueiras, como ler um livro ou assistir a um filme no DVD. Sento na poltrona e fico pasmadamente observando “figurinhas”. O danado do dragão está sempre do meu lado esquerdo, que é onde fica o coração, soprando e sussurrando o seu nome como um mantra. No começo pedia mentalmente que ele se calasse (que parasse de dizer este nome que tão de cor eu já conheço e dele só pra matar o tempo imaginei mil rimas), porque é assim que os dragões se comunicam: usando de telepatia. Mas os dragões são seres rebeldes por natureza e muito persistentes nos seus propósitos; habitualmente nos vencem pelo cansaço. Ao invés de curvarem-se à nossa vontade eles acabam nos persuadindo. Há muito desisti de calar o dragão e deixo-o sussurrar nesta língua estranha e pouco conhecida, quase inaudível ao ouvido humano, da qual por convivência me tornei fluente. Assim por falta de opção, coloco a TV no modo mudo e sigo apreciando as figurinhas.

Neste dia em que o dragão me deixou por uns instantes e que eu em vã ilusão pensei que ele talvez pudesse estar enfastiado de minha presença e fosse buscar novos ares, senti, já de tardezinha, uma leve brisa soprando por uma fresta de janela que por descuido havia esquecido aberta. Então a janela escancarou e um vento mais forte respingado de chuva soprou e o trouxe de volta.

Mas ele não estava só. Chegou trazendo consigo outro visitante, mitológico: uma harpia. As harpias gostam de acompanhar os dragões quando encontram algum lar assim um tanto vazio como o meu, por qual razão eu ainda não atinei. Talvez elas se alimentem do calor que eles sopram caprichosamente no coração dos humanos com quem convivem. Embora acompanhem comumente o dragão, as harpias têm personalidade totalmente diversa destes. Os dragões são individualistas e solitários por natureza e apenas suportam a companhia das harpias; já estas são muito sociáveis e não acompanham ou compartilham espaço apenas com os dragões, mas podem conviver com seres humanos e outros bichos e fazem questão de que se notem a sua presença e acima de tudo sentem certo prazer sádico em torturar os seres com quem habitam. Como os dragões, elas são seres invisíveis e sua presença pode ser percebida pelo cheiro.

Se os dragões cheiram a hortelã e alecrim, as harpias cheiram a terra molhada em agosto. Aquele cheiro que ascende em nossas narinas logo após a primeira chuva que brota do céu depois de uma longa estiagem de inverno. As harpias podem ser de uma maldade quase psicótica às vezes.

Não; acho que estou exagerando, não é para tanto.

Mas elas gostam de disparar pequenos espinhos de suas asas só para incomodar os humanos aos quais visita. Certamente estes espinhos têm alguma substância alucinógena porque me causam visões. Quando a harpia me atinge com uma de suas farpas afiadas, posso vê-la, humanamente linda, num vestido branco esvoaçante e o vento espalhando seus cabelos longos. E nestes devaneios, ela me diz coisas doces, numa voz quase sussurrante, cujo significado eu não consigo decifrar porque ao fundo existe uma cachoeira alta que respinga longe, formando um véu fino de neblina. Outras vezes ela ainda é uma criança, com cabelos não tão longos, quase loiros e pés descalços brincando embaixo de um pé de uvas japonesas carregado de frutas. E são dolorosos estes devaneios, porque embora eu morra de desejo de tê-la nestes momentos e ela está a minha mão, ao mesmo tempo a sinto tão longe que me parecem anos-luz e quando dou por mim e me refaço destes delírios, eu não consigo precisar o tempo que duraram.

Harpias já vi aos montes por ai. Também a outros seres mitológicos, ao menos em sonhos. Mas eu nunca havia conhecido um dragão antes e talvez nunca conheça outro. Acredito (mas talvez eu esteja enganado) que nem eu, nem outro ser mortal ou imortal possa conhecer mais de um dragão em uma única existência consciente. Talvez um dragão jamais abandone totalmente um humano durante toda a sua vida e depois que se afeiçoa a ele o siga até o túmulo, mas acho que ainda não morre; sobrevive para sei lá o que não sei onde.

Também creio que por compartilhar que seja uma fração pequena dessa existência cara com um dragão, o saldo da vida torna-se positivo, mesmo que com ele tenha vindo como souvenir uma harpia... Porque afinal, também aprendemos, com certo masoquismo indisfarçado, a afeiçoar-nos a ela.

Conto publicado em "Contos de Outono" - Lançamento em 10 de maio de 2010

http://www.camarabrasileira.com/contosdeoutono2010.htm

Agnaldo Garcia

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2010

Teresa

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos

que o resto do corpo
(Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando

que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus

voltou a se mover sobre a face das águas.

Manuel Bandeira

domingo, 21 de fevereiro de 2010

Epílogo

Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada agüenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cartas? Não se sabe... Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca. Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade.

Mario Quintana

sábado, 20 de fevereiro de 2010

O Amor é Assim

Querida amo-te

Não como nos filmes de romance

Não te amo sempre com ternura

Às vezes é um sentimento ruim,

Quase ódio

Às vezes é fraternal

Suave como o sono tranqüilo

E às vezes com fogo de paixão

Amo-te assim

Não como num conto de fadas

Porque nada deste amor existe

Amo-te com precisão matemática

Embora às vezes este sentimento

Manifeste-se em paixão caótica

Amo-te deveras

De maneira falsa e ilícita

Por algum tempo

Despojadamente sem sabedoria

Amo-te por toda a vida

A menos que ela perdure mais cem anos

Amo-te até o ano que vem

Quando o teu gênio desgraçado

Ou a minha depressão

Nos separe para todo o sempre

Amém

para Débora em algum dia de 1997

Agnaldo Garcia

Esperemos

Há outros dias que não têm chegado ainda,
que estão fazendo-se
como o pão ou as cadeiras ou o produto
das farmácias ou das oficinas
- há fábricas de dias que virão -
existem artesãos da alma
que levantam e pesam e preparam
certos dias amargos ou preciosos
que de repente chegam à porta
para premiar-nos
com uma laranja
ou assassinar-nos de imediato.

Pablo Neruda

quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

Já és Minha

Já és minha.

Repousa com teu sonho em meu sonho.
Amor, dor, trabalho, devem dormir agora.
Gira a noite sobre suas invisíveis rodas
e junto a mim és pura como âmbar dormido...
Nenhuma mais amor, dormira com meus sonhos...
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma viajará pela sombra comigo, só tu.
Sempre viva.

Sempre sol... Sempre lua...
Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves sinais sem rumo...
Teus olhos se fecharam como

Duas asas cinzas, enquanto eu sigo a água
que levas e me leva.
A noite... O mundo... O vento enovelam seu destino,
e já não sou sem ti senão apenas teu sonho...

Pablo Neruda

Crônica do Amor

Ninguém ama outra pessoa pelas qualidades que ela tem, caso contrário os honestos, simpáticos e não fumantes teriam uma fila de pretendentes batendo a porta.

O amor não é chegado a fazer contas, não obedece à razão. O verdadeiro amor acontece por empatia, por magnetismo, por conjunção estelar.

Ninguém ama outra pessoa porque ela é educada, veste-se bem e é fã do Caetano. Isso são só referenciais.

Ama-se pelo cheiro, pelo mistério, pela paz que o outro lhe dá, ou pelo tormento que provoca.

Ama-se pelo tom de voz, pela maneira que os olhos piscam, pela fragilidade que se revela quando menos se espera.

Você ama aquela petulante. Você escreveu dúzias de cartas que ela não respondeu, você deu flores que ela deixou a seco.

Você gosta de rock e ela de chorinho, você gosta de praia e ela tem alergia a sol, você abomina Natal e ela detesta o Ano Novo, nem no ódio vocês combinam. Então?

Então, que ela tem um jeito de sorrir que o deixa imobilizado, o beijo dela é mais viciante do que LSD, você adora brigar com ela e ela adora implicar com você. Isso tem nome.

Você ama aquele cafajeste. Ele diz que vai e não liga, ele veste o primeiro trapo que encontra no armário. Ele não emplaca uma semana nos empregos, está sempre duro, e é meio galinha. Ele não tem a menor vocação para príncipe encantado e ainda assim você não consegue despachá-lo.

Quando a mão dele toca na sua nuca, você derrete feito manteiga. Ele toca gaita na boca, adora animais e escreve poemas. Por que você ama este cara?

Não pergunte pra mim você é inteligente. Lê livros, revistas, jornais. Gosta dos filmes dos irmãos Coen e do Robert Altman, mas sabe que uma boa comédia romântica também tem seu valor.

É bonita. Seu cabelo nasceu para ser sacudido num comercial de xampu e seu corpo tem todas as curvas no lugar. Independente, emprego fixo, bom saldo no banco. Gosta de viajar, de música, tem loucura por computador e seu fettucine ao pesto é imbatível.

Você tem bom humor, não pega no pé de ninguém e adora sexo. Com um currículo desse, criatura, por que está sem um amor?

Ah, o amor, essa raposa. Quem dera o amor não fosse um sentimento, mas uma equação matemática: eu linda + você inteligente = dois apaixonados.

Não funciona assim.

Amar não requer conhecimento prévio nem consulta ao SPC. Ama-se justamente pelo que o Amor tem de indefinível.

Honestos existem aos milhares, generosos têm às pencas, bons motoristas e bons pais de família, tá assim, ó!

Mas ninguém consegue ser do jeito que o amor da sua vida é! Pense nisso. Pedir é a maneira mais eficaz de merecer. É a contingência maior de quem precisa.

Arnaldo Jabor

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Pequenas Epifanias

Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada. Dois ou três almoços, uns silêncios. Fragmentos disso que chamamos, com aquele mesmo descuido, de “minha vida”. Outros fragmentos, daquela “outra vida”. De repente cruzadas ali, por puro mistério, sobre as toalhas brancas e os copos de vinho ou água, entre casquinhas de pão e cinzeiros cheios que os garçons rapidamente esvaziavam para que nos sentíssemos limpos. E nos sentíamos.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração. Mas no quarto, quinto dia, um trecho obsessivo do conto de Clarice Lispector “Tentação” na cabeça estonteada de encanto: “Mas ambos estavam comprometidos. Ele, com sua natureza aprisionada. Ela, com sua infância impossível”. Cito de memória, não sei se correto. Fala no encontro de uma menina ruiva, sentada num degrau às três da tarde, com um cão basset também ruivo, que passa acorrentado. Ele pára. Os dois se olham. Cintilam, prometidos. A dona o puxa. Ele se vai. E nada acontece.

De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso – aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

Caio Fernando Abreu

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Quando Eu Morrer

Quando eu morrer quero tuas mãos em meus olhos;
quero a luz e o trigo de tuas mãos amadas
passar uma vez mais sobre mim seu viço:
sentir a suavidade que mudou meu destino.

Quero que vivas enquanto eu, adormecido, te espero,
quero que teus ouvidos sigam ouvindo o vento,
que cheires o amor do mar que amamos juntos
e que sigas pisando a areia que pisamos.

Quero que o que amo continue vivo
e a ti amei e cantei sobre todas as coisas
por isso segue tu florescendo, florida.

Para que alcances tudo o que meu amor te ordena,
para que passeie minha sombra por teu pêlo,
para que assim conheçam a razão do meu canto.

Pablo Neruda

Tua Música

.

"Como para acercá-la minha alma a procura.

Meu coração a procura, e ela não está comigo."

Pablo Neruda

Quisera não mais te amar
Mas a tua música em mim persiste
E se espalha, ressoa, está em tudo
Tua nota vibra incessante
Toda célula do meu corpo te escuta
Cada acorde teu me emociona
E vivo assim por que te quero
E quero viver porque te tenho aqui comigo
Chove agora e faz frio
Manifestando em matéria
Esta saudade que me pesa à alma
E sigo te amando, música suave
Embora às vezes
Tua lembrança seja uma tormenta
É confusão, insanidade
E que assim seja minha amada...
Que o teu amor me cure
Ou me enlouqueça
Que a tua boca beije antes os meus lábios...
Do que as minhas mãos frias
E a tua música ecoe em meus ouvidos
Para sempre...

Agnaldo Garcia

do Filme: "O Som do Coração"

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

Antes de Te Amar

Antes de te amar nada contava

Caminhava por um mundo sem forma

Pisava em solo sem firmeza

Não havia dor, somente o nada

O mundo cinza carecia de cores

E os cheiros de novos perfumes

As coisas não tinham paladar

Os sons soavam sem graves nem agudos

As estrelas mal luziam no sereno

Os olhos eram secos pelo vento

E andei por ruas silenciosas

Conheci cidades vazias de alma

Poços cheios de areia apenas

Nada importava nem tinha razão de ser

Então o teu espírito e a tua alegria

De vida transbordaram a minha alma

Agnaldo Garcia

É Assim Que Te Quero

É assim que te quero, amor,
assim, amor, é que eu gosto de ti,
tal como te vestes
e como arranjas
os cabelos e como
a tua boca sorri,
ágil como a água
da fonte sobre as pedras puras,
é assim que te quero, amada,
Ao pão não peço que me ensine,
mas antes que não me falte
em cada dia que passa.
Da luz nada sei, nem donde
vem nem para onde vai,
apenas quero que a luz alumie,
e também não peço à noite explicações,
espero-a e envolve-me,
e assim tu pão e luz e sombra és.
Chegastes à minha vida com o que trazias,

Feita de luz e pão e sombra, eu te esperava,
e é assim que preciso de ti,
assim que te amo,
e os que amanhã quiserem ouvir
o que não lhes direi, que o leiam aqui
e retrocedam hoje porque é cedo
para tais argumentos.
Amanhã dar-lhes-emos apenas
uma folha da árvore do nosso amor, uma folha
que há de cair sobre a terra
como se a tivessem produzido os nosso lábios,
como um beijo caído
das nossas alturas invencíveis
para mostrar o fogo e a ternura
de um amor verdadeiro.

Pablo Neruda

Ternura


Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.


Vinicius de Moraes

Carta Anônima

"Tenho trabalhado tanto, mas penso sempre em você. Mais de tardezinha que de manhã, mais naqueles dias que parecem poeira assentada aos poucos e com mais força enquanto a noite avança. Não são pensamentos escuros, embora noturnos. Tão transparentes que até parecem de vidro, vidro tão fino que, quando penso mais forte, parece que vai ficar assim clack! e quebrar em cacos, o pensamento que penso de você. Se não dormisse cedo nem estivesse quase sempre cansado, acho que esses pensamentos quase doeriam e fariam clack! de madrugada e eu me veria catando cacos de vidro entre os lençóis. Brilham, na palma da minha mão. Num deles, tem uma borboleta de asa rasgada. Noutro, um barco confundido com a linha do horizonte, onde também tem uma ilha. Não, não: acho que a ilha mora num caquinho só dela. Noutro, um punhal de jade. Coisas assim, algumas ferem, mesmo essas que são bonitas. Parecem filme, livro, quadro. Não doem porque não ameaçam. Nada que eu penso de você ameaça. Durmo cedo, nunca quebra.

Daí penso coisas bobas quando, sentado na janela do ônibus, depois de trabalhar o dia inteiro, encosto a cabeça na vidraça, deixo a paisagem correr, e penso demais em você. Quando não encontro lugar para sentar, o que é mais freqüente, e me deixava irritado, descobri um jeito engraçado de, mesmo assim, continuar pensando em você. Me seguro naquela barra de ferro, olho através das janelas que, nessa posição, só deixam ver metade do corpo das pessoas pelas calçadas, e procuro nos pés daquelas aqueles que poderiam ser os seus. (A teus pés, lembro.). E fico tão embalado que chego a me curvar, certo que são mesmo os seus pés parados em alguma parada, alguma esquina. Nunca vejo você - seria, seriam? Boas e bobas, são as coisas todas que penso quando penso em você. Assim: de repente ao dobrar uma esquina dou de cara com você que me prega um susto de mentirinha como aqueles que as crianças pregam umas nas outras. Finjo que me assusto, você me abraça e vamos tomar um sorvete, suco de abacaxi com hortelã ou comer salada de frutas em qualquer lugar. Assim: estou pensando em você e o telefone toca e corta o meu pensamento e do outro lado do fio você me diz: estou pensando tanto em você. Digo eu também, mas não sei o que falamos em seguida porque ficamos meio encabulados, a gente tem muito pudor de parecer ridículos melosos piegas bregas românticos pueris banais. Mas no que eu penso, penso também que somos meio tudo isso, não tem jeito, é tudo que vamos dizendo, quando falamos no meu pensamento, é frágil como a voz de Olívia Byington cantando Villa-Lobos, mais perto de Mozart que de Wagner, mais Chagal que Van Gogh, mais Jarmush que Win Wenders, mais Cecília Meireles que Nelson Rodrigues.

Tenho trabalhado tanto, por isso mesmo talvez ando pensando assim em você. Brotam espaços azuis quando penso. No meu pensamento, você nunca me critica por eu ser um pouco tolo, meio melodramático, e penso então tule nuvem castelo seda perfume brisa turquesa vime. E deito a cabeça no seu colo ou você deita a cabeça no meu, tanto faz, e ficamos tanto tempo assim que a terra treme e vulcões explodem e pestes se alastram e nós nem percebemos, no umbigo do universo. Você toca minha mão, eu toco na sua.

Demora tanto que só depois de passarem três mil dias consigo olhar bem dentro dos seus olhos e é então feito mergulhar numas águas verdes tão cristalinas que têm algas na superfície ressaltadas contra a areia branca do fundo. Aqualouco, encontro pérolas. Sei que é meio idiota, mas gosto de pensar desse jeito, e se estou em pé no ônibus solto um pouco as mãos daquela barra de ferro para meu corpo balançar como se estivesse a bordo de um navio ou de você. Fecho os olhos, faz tanto bem, você não sabe. Suspiro tanto quando penso em você, chorar só choro às vezes, e é tão freqüente. Caminho mais devagar, certo que na próxima esquina, quem sabe. Não tenho tido muito tempo ultimamente, mas penso tanto em você que na hora de dormir vezemquando até sorrio e fico passando a ponta do meu dedo no lóbulo da sua orelha e repito repito em voz baixa te amo tanto dorme com os anjos. Mas depois sou eu quem dorme e sonha, sonho com os anjos. Nuvens, espaços azuis, pérolas no fundo do mar. Clack! como se fosse verdade, um beijo."

Caio Fernando Abreu

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Ata-me

Eu cosmonauta que sou

Prometo não fincar pé noutro território

Não desfraldar bandeira estranha

Jamais vestir outra camisa

Porque ficarás em mim assim atada

Segunda pele me vestindo

Vinho que me embriaga

Lúcida insanidade que desperta meu espírito

Quero teu pelo, teu cabelo em mim colado

Teu bem querer é o que me desafia

Manter-me firme o rumo à frente

Em rodopio que seja

Quero atrelar-me alguma vez em desvario

E mergulhar, prender o ar

Subir ileso à tona

E navegar teu mar

Mercê de mim te encontrar

Balançar em tuas ondas

Tomar das tuas mãos

Sorver a alegria evaporada

Buscar no teu silêncio palavras que me curem

Banhar-me em teu antídoto

Para não mais sofrer de amar só

Em teu olhar aprofundar razões

Motivos que me mostrem

Do que se vale a vida

Firmado assim que estou completamente

Um momento apenas basta para que eu me lembre

Que estarás em mim e que será assim:

Eternamente

Agnaldo Garcia