Inspirado na crônica
“Os Dragões não Conhecem o Paraíso”
de Caio Fernando Abreu
“Lua vermelha como fundo
Ao Dragão que voa,
Não duas coisas distintas
Mas uma só alma.”
O Dragão e a Lua Vermelha, Marco Milani
E foi assim um dia, de surpresa, sem indício de qualquer natureza, que um dragão passou a viver comigo.
Suspeito que não. Talvez ele estivesse já morando aqui há muito tempo.
Quem sabe já há alguns anos sem que eu entorpecido pelas manhãs de sono de sábado ou o tédio da espera da segunda-feira num domingo à noite pudesse tê-lo notado enquanto ele arrastava quase que silenciosamente as asas pela minha sala ou então bafejasse e chamuscasse, de leve, as teias de aranhas alojadas nos cantos deixando pequenos e imperceptíveis resquícios e odores de cinzas. E míope nos sentidos, só o percebi quando aos poucos senti que o peito me queimava como se estivesse próximo a uma fogueira, daquelas que a gente fazia nas noites, quando menino, para aquecer do frio enquanto brincava na rua.
Assim, ele veio e se instalou como um gato preguiçoso e arredio, daqueles que nos tomam como donos sem pedir a nossa permissão e bebem cerimoniosamente o leite que colocamos num prato no canto da sala sem um olhar sequer de agradecimento como geralmente fazem os cães. E sempre, fortuitamente, dando o ar de sua graça ele aparece, e eu identifico a sua chegada pelo ruído diferente do rufar de suas asas que se misturam com o barulho do vento quedando nas árvores. Aloja-se em casa e vai ficando, até que eu de cansaço lá pelas duas da matina e já com raiva do sono que irei curtir no dia seguinte, adormeça.
Mas um dia destes, o dragão me deixou por uns instantes. Do mesmo modo como sempre vem, foi-se sutilmente sem que eu quase não desse pela sua falta. E assim que notei a sua saída sem retorno previsto ou avisado, fiquei quietinho e fechei as janelas e portas deixando-me ficar encolhido num canto do sofá, com a televisão em baixo volume para que quando, se ele por acaso retornasse, imaginasse talvez que não houvesse ninguém em casa e então partisse novamente. Nos dias em que está comigo, ligo a TV às vezes, mas não consigo assisti-la; há muito não pratico esta trivial atividade ou outras não menos corriqueiras, como ler um livro ou assistir a um filme no DVD. Sento na poltrona e fico pasmadamente observando “figurinhas”. O danado do dragão está sempre do meu lado esquerdo, que é onde fica o coração, soprando e sussurrando o seu nome como um mantra. No começo pedia mentalmente que ele se calasse (que parasse de dizer este nome que tão de cor eu já conheço e dele só pra matar o tempo imaginei mil rimas), porque é assim que os dragões se comunicam: usando de telepatia. Mas os dragões são seres rebeldes por natureza e muito persistentes nos seus propósitos; habitualmente nos vencem pelo cansaço. Ao invés de curvarem-se à nossa vontade eles acabam nos persuadindo. Há muito desisti de calar o dragão e deixo-o sussurrar nesta língua estranha e pouco conhecida, quase inaudível ao ouvido humano, da qual por convivência me tornei fluente. Assim por falta de opção, coloco a TV no modo mudo e sigo apreciando as figurinhas.
Neste dia em que o dragão me deixou por uns instantes e que eu em vã ilusão pensei que ele talvez pudesse estar enfastiado de minha presença e fosse buscar novos ares, senti, já de tardezinha, uma leve brisa soprando por uma fresta de janela que por descuido havia esquecido aberta. Então a janela escancarou e um vento mais forte respingado de chuva soprou e o trouxe de volta.
Mas ele não estava só. Chegou trazendo consigo outro visitante, mitológico: uma harpia. As harpias gostam de acompanhar os dragões quando encontram algum lar assim um tanto vazio como o meu, por qual razão eu ainda não atinei. Talvez elas se alimentem do calor que eles sopram caprichosamente no coração dos humanos com quem convivem. Embora acompanhem comumente o dragão, as harpias têm personalidade totalmente diversa destes. Os dragões são individualistas e solitários por natureza e apenas suportam a companhia das harpias; já estas são muito sociáveis e não acompanham ou compartilham espaço apenas com os dragões, mas podem conviver com seres humanos e outros bichos e fazem questão de que se notem a sua presença e acima de tudo sentem certo prazer sádico em torturar os seres com quem habitam. Como os dragões, elas são seres invisíveis e sua presença pode ser percebida pelo cheiro.
Se os dragões cheiram a hortelã e alecrim, as harpias cheiram a terra molhada em agosto. Aquele cheiro que ascende em nossas narinas logo após a primeira chuva que brota do céu depois de uma longa estiagem de inverno. As harpias podem ser de uma maldade quase psicótica às vezes.
Não; acho que estou exagerando, não é para tanto.
Mas elas gostam de disparar pequenos espinhos de suas asas só para incomodar os humanos aos quais visita. Certamente estes espinhos têm alguma substância alucinógena porque me causam visões. Quando a harpia me atinge com uma de suas farpas afiadas, posso vê-la, humanamente linda, num vestido branco esvoaçante e o vento espalhando seus cabelos longos. E nestes devaneios, ela me diz coisas doces, numa voz quase sussurrante, cujo significado eu não consigo decifrar porque ao fundo existe uma cachoeira alta que respinga longe, formando um véu fino de neblina. Outras vezes ela ainda é uma criança, com cabelos não tão longos, quase loiros e pés descalços brincando embaixo de um pé de uvas japonesas carregado de frutas. E são dolorosos estes devaneios, porque embora eu morra de desejo de tê-la nestes momentos e ela está a minha mão, ao mesmo tempo a sinto tão longe que me parecem anos-luz e quando dou por mim e me refaço destes delírios, eu não consigo precisar o tempo que duraram.
Harpias já vi aos montes por ai. Também a outros seres mitológicos, ao menos em sonhos. Mas eu nunca havia conhecido um dragão antes e talvez nunca conheça outro. Acredito (mas talvez eu esteja enganado) que nem eu, nem outro ser mortal ou imortal possa conhecer mais de um dragão em uma única existência consciente. Talvez um dragão jamais abandone totalmente um humano durante toda a sua vida e depois que se afeiçoa a ele o siga até o túmulo, mas acho que ainda não morre; sobrevive para sei lá o que não sei onde.
Também creio que por compartilhar que seja uma fração pequena dessa existência cara com um dragão, o saldo da vida torna-se positivo, mesmo que com ele tenha vindo como souvenir uma harpia... Porque afinal, também aprendemos, com certo masoquismo indisfarçado, a afeiçoar-nos a ela.
Conto publicado em "Contos de Outono" - Lançamento em 10 de maio de 2010
http://www.camarabrasileira.com/contosdeoutono2010.htm
Agnaldo Garcia