Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.
Carlos Drummond de Andrade
Dizem que quando a gente está para morrer, a nossa vida inteira passa diante de nossos olhos.
Então acho que de alguma forma eu ainda não havia morrido, embora contemplasse de uma forma surpreendentemente resignada a mim mesmo dentro daquele caixão.
Via-a também ali ao lado do meu corpo. Bela ainda, em seus mais de setenta verões. Não que o tempo não lhe houvesse provocado marcas. Mas cada idade tem a sua beleza. Os anos lhe conferiram certa elegância. “Era uma ruína, uma imponente ruína...”. Naquele momento toda a minha atenção de defunto era para ela. O velório ficou vazio e completamente silencioso. As velas e as lâmpadas fluorescentes se apagaram. Só havia uma luz branca que vinha de todo lugar e que iluminava perfeitamente bem o seu rosto. Eu podia observar com clareza todas as expressões de sua face e posso jurar que havia muita tristeza.
Confesso que fantasiei vê-la se jogar sobre mim no caixão escandalosamente suplicando para que eu me levantasse. Ou então que ela desmaiasse de horror diante da minha figura inerte e pálida. Desejei muito que isso acontecesse. Vi e revi aquela cena em minha imaginação. Como um diretor obcecado pela peça, compus o cenário, ensaiei bem os atores. Mas ela apenas enxugava com um guardanapo de papel as lágrimas de um choro contido e discreto. Nem ao menos um lenço de pano.
Podia sentir ainda depois de algum tempo, o calor de suas mãos quando pousou nas minhas como se fosse rezar uma prece. Talvez estivesse rezando em silêncio. Lembrei de um trecho do morto Brás Cubas no encontro fúnebre com a sua amada Virgília: “... Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos anos antes e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova...”
Não tive a sorte de Brás Cubas. Não nos amamos ela e eu...
Acho agora que a morte realmente me toma posse, creio que a hora derradeira se aproxima, pois assisto minha vida começar a passar diante de mim como um filme em 4D, com a clareza impecável que é dada aos mortos ter (?).
De súbito me vejo em um cenário conhecido da infância, há muito guardado nos recônditos de minha memória. Somos nós dois atravessando a rua juntos. Mais do que expectador, eu faço parte da cena.
Esta geração eletrônica talvez não conheça do que brincávamos naquele momento. A brincadeira chamava-se “passa-a-rua”. Uma criança tentava cercar outras cujo objetivo era atravessarem um determinado trecho de rua sem serem tocadas. Naquela época não havia tantos automóveis e o risco de sermos atropelados era ínfimo.
Eu tomo as suas mãos pequenas e delicadas e corremos juntos, escapando do perigo que tragicamente nos poria fora do jogo. Naquele instante ela me olha com ternura, sentindo-se protegida pela minha atitude. Só agora eu vejo o que a atenção distraída da infância não percebeu. Tínhamos talvez dez ou onze anos.
Outro insight, um clarão. Ainda minhas mãos estão unidas às dela, mas já estamos mais crescidos. Olho-a nos olhos. Ela desvia o olhar, tímida. Em volta todos gritam: Morango! Morango! Estamos sob um pé de uvas japonesas. Eu devo beijá-la. São as regras do jogo. Porém na hora H, um adulto irrompe entre a algazarra a puxar orelhas e trovejar em broncas. Um bonde de luz me recolhe, desço num terminal rodoviário com espinhas na cara e uma sensação de eternidade.
Alguém me acompanha, alguém está com ela. Eu não me lembro do meu amigo e nem de quem a acompanha. Só vejo o seu rosto adolescente. Ela me diz que nem sabia quem eu era e de longe me escolheu. Um jeito discreto feminino de dizer que queria “ficar” comigo. “Ficar”; não era assim que dizíamos na época, não era nem parecido com o significado de hoje... Convidou-me para ir à sua casa e eu não fui. Uma urgência qualquer da vida me chamava para casa. Ficaria para uma próxima...
Entramos no ônibus, eu e meu amigo. Desembarco numa reunião de família doze anos depois. Ela casada, filha pequena, eu casado e um filho. Abraçamo-nos saudosos pelos anos de separação. A conversa flui agradável. Nos perdemos dos outros presentes e nos achamos agora oito anos depois sentados em frente à área de uma casa. O papo continua fluindo muito agradável. Ela me fala do fim do seu casamento, das mágoas vividas, eu lhe conto sobre a minha graduação e outras amenidades da vida. Ela já é mulher bela e madura. Rojões explodem no céu e dentro de mim. Então me dou conta: finalmente cai a ficha...
Outros fogos colorem o céu e iluminam a superfície de uma piscina num lugar qualquer. É dezembro e a água é quente embora seja meia noite. Eu estou imerso até a cintura com roupa e tudo, bêbado e deprimido porque estou só e ela está com alguém a centenas de quilômetros de distância. Fico imaginando que ela esteja muito feliz naquele momento. Tenho vontade de gritar seu nome com tanta força até que meus pulmões arrebentem. Subitamente, um vórtice na água me puxa para o fundo e do outro lado, me vejo molhado batendo na janela do seu carro. Eu estou pedindo para que ela abra o vidro e fale comigo. Chove muito, estou encharcado até a alma e ela me diz numa linguagem sinalizada, que eu mal entendo, pelo vidro respingado: “Depois te ligo e nos falamos”. Não ligou.
Uma luz forte de farol alto embaça meus olhos. Já são velas que eu vejo. É o velório de um tio querido e eu choro muito. Ela chega, vejo-a assomar à porta carregando cinquenta e tantos belos anos. Nós nos abraçamos e dizemos da dor da perda. Pergunto sobre a família e ela gentilmente me faz as mesmas indagações. Olho-a sem esperança alguma. Somente com tristeza.
Olho mais uma vez para meu querido tio naquele caixão, mas já não é mais ele quem está lá. Sou eu vestindo a mortalha de madeira.
É uma estrada no tempo e eu cheguei ao ponto presente. Minha jornada findou-se aos setenta e oito anos, dois meses e dezessete dias. Tudo vai diminuindo de intensidade e energia até sumir por completo: visão, sons, lembranças.
Por fim, só o vazio...o nada.
Agnaldo Garcia