quarta-feira, 27 de julho de 2011

A Morte de Teodoro

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade


Dizem que quando a gente está para morrer, a nossa vida inteira passa diante de nossos olhos.

Então acho que de alguma forma eu ainda não havia morrido, embora contemplasse de uma forma surpreendentemente resignada a mim mesmo dentro daquele caixão.

Via-a também ali ao lado do meu corpo. Bela ainda, em seus mais de setenta verões. Não que o tempo não lhe houvesse provocado marcas. Mas cada idade tem a sua beleza. Os anos lhe conferiram certa elegância. “Era uma ruína, uma imponente ruína...”. Naquele momento toda a minha atenção de defunto era para ela. O velório ficou vazio e completamente silencioso. As velas e as lâmpadas fluorescentes se apagaram. Só havia uma luz branca que vinha de todo lugar e que iluminava perfeitamente bem o seu rosto. Eu podia observar com clareza todas as expressões de sua face e posso jurar que havia muita tristeza.

Confesso que fantasiei vê-la se jogar sobre mim no caixão escandalosamente suplicando para que eu me levantasse. Ou então que ela desmaiasse de horror diante da minha figura inerte e pálida. Desejei muito que isso acontecesse. Vi e revi aquela cena em minha imaginação. Como um diretor obcecado pela peça, compus o cenário, ensaiei bem os atores. Mas ela apenas enxugava com um guardanapo de papel as lágrimas de um choro contido e discreto. Nem ao menos um lenço de pano.

Podia sentir ainda depois de algum tempo, o calor de suas mãos quando pousou nas minhas como se fosse rezar uma prece. Talvez estivesse rezando em silêncio. Lembrei de um trecho do morto Brás Cubas no encontro fúnebre com a sua amada Virgília: “... Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos anos antes e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova...”

Não tive a sorte de Brás Cubas. Não nos amamos ela e eu...

Acho agora que a morte realmente me toma posse, creio que a hora derradeira se aproxima, pois assisto minha vida começar a passar diante de mim como um filme em 4D, com a clareza impecável que é dada aos mortos ter (?).

De súbito me vejo em um cenário conhecido da infância, há muito guardado nos recônditos de minha memória. Somos nós dois atravessando a rua juntos. Mais do que expectador, eu faço parte da cena.

Esta geração eletrônica talvez não conheça do que brincávamos naquele momento. A brincadeira chamava-se “passa-a-rua”. Uma criança tentava cercar outras cujo objetivo era atravessarem um determinado trecho de rua sem serem tocadas. Naquela época não havia tantos automóveis e o risco de sermos atropelados era ínfimo.

Eu tomo as suas mãos pequenas e delicadas e corremos juntos, escapando do perigo que tragicamente nos poria fora do jogo. Naquele instante ela me olha com ternura, sentindo-se protegida pela minha atitude. Só agora eu vejo o que a atenção distraída da infância não percebeu. Tínhamos talvez dez ou onze anos.

Outro insight, um clarão. Ainda minhas mãos estão unidas às dela, mas já estamos mais crescidos. Olho-a nos olhos. Ela desvia o olhar, tímida. Em volta todos gritam: Morango! Morango! Estamos sob um pé de uvas japonesas. Eu devo beijá-la. São as regras do jogo. Porém na hora H, um adulto irrompe entre a algazarra a puxar orelhas e trovejar em broncas. Um bonde de luz me recolhe, desço num terminal rodoviário com espinhas na cara e uma sensação de eternidade.

Alguém me acompanha, alguém está com ela. Eu não me lembro do meu amigo e nem de quem a acompanha. Só vejo o seu rosto adolescente. Ela me diz que nem sabia quem eu era e de longe me escolheu. Um jeito discreto feminino de dizer que queria “ficar” comigo. “Ficar”; não era assim que dizíamos na época, não era nem parecido com o significado de hoje... Convidou-me para ir à sua casa e eu não fui. Uma urgência qualquer da vida me chamava para casa. Ficaria para uma próxima...

Entramos no ônibus, eu e meu amigo. Desembarco numa reunião de família doze anos depois. Ela casada, filha pequena, eu casado e um filho. Abraçamo-nos saudosos pelos anos de separação. A conversa flui agradável. Nos perdemos dos outros presentes e nos achamos agora oito anos depois sentados em frente à área de uma casa. O papo continua fluindo muito agradável. Ela me fala do fim do seu casamento, das mágoas vividas, eu lhe conto sobre a minha graduação e outras amenidades da vida. Ela já é mulher bela e madura. Rojões explodem no céu e dentro de mim. Então me dou conta: finalmente cai a ficha...

Outros fogos colorem o céu e iluminam a superfície de uma piscina num lugar qualquer. É dezembro e a água é quente embora seja meia noite. Eu estou imerso até a cintura com roupa e tudo, bêbado e deprimido porque estou só e ela está com alguém a centenas de quilômetros de distância. Fico imaginando que ela esteja muito feliz naquele momento. Tenho vontade de gritar seu nome com tanta força até que meus pulmões arrebentem. Subitamente, um vórtice na água me puxa para o fundo e do outro lado, me vejo molhado batendo na janela do seu carro. Eu estou pedindo para que ela abra o vidro e fale comigo. Chove muito, estou encharcado até a alma e ela me diz numa linguagem sinalizada, que eu mal entendo, pelo vidro respingado: “Depois te ligo e nos falamos”. Não ligou.

Uma luz forte de farol alto embaça meus olhos. Já são velas que eu vejo. É o velório de um tio querido e eu choro muito. Ela chega, vejo-a assomar à porta carregando cinquenta e tantos belos anos. Nós nos abraçamos e dizemos da dor da perda. Pergunto sobre a família e ela gentilmente me faz as mesmas indagações. Olho-a sem esperança alguma. Somente com tristeza.

Olho mais uma vez para meu querido tio naquele caixão, mas já não é mais ele quem está lá. Sou eu vestindo a mortalha de madeira.

É uma estrada no tempo e eu cheguei ao ponto presente. Minha jornada findou-se aos setenta e oito anos, dois meses e dezessete dias. Tudo vai diminuindo de intensidade e energia até sumir por completo: visão, sons, lembranças.

Por fim, só o vazio...o nada.


Agnaldo Garcia

quinta-feira, 21 de julho de 2011

A Tempestade


Havia apenas um mormaço quente e o calor do sol ardendo na pele, prenúncio de um dia úmido de verão. O céu azul e limpo pela manhã, cobriu-se rapidamente de nuvens, inicialmente esparsas e brancas, depois se adensando e transformando-se em enormes chumaços azuis escuros, por causa da grande densidade de vapor. Relâmpagos passaram a riscar o céu em intervalos contínuos e a terra exalava aquele cheiro característico quando molha. O vento suave de brisa soprou mais forte trazendo respingos de chuva. Poeira e folhas de árvore espalharam-se pelo ar e o dia fez-se noite.

Eu, assustado, fechei portas e janelas aguardando impotente que o aguaceiro parasse, instinto primitivo de continuar vivo.

Choveu e muito. O granizo pipocou sobre o telhado e redemoinhos de vento retorceram árvores e destelharam casas. Jatos de água intermitentes atiravam-se pela janela respingando no sofá da sala.

Choveu assim, por horas. Depois a tempestade arrefeceu e a noite foi “endiecendo” novamente até que apenas podia-se ver um barrado azul no horizonte. Um arco-íris duplo arqueou no céu com o sol se pondo, o granizo derreteu deixando o dia mais frio que o normal para esta época do ano. Pássaros voltaram a chilrear nas árvores, sacudindo suas penas e atirando longe respingos de água. Da tempestade restou apenas uma lembrança ruim e um sentimento de alívio...

No início, logo após a tormenta, eu me acostumei a olhar para o céu sempre remoendo a procura de indícios que me mostrassem quando outra adviria sobre mim derramando sua fúria, instituindo caos à quase calma reinante, subvertendo a ordem dos astros e trazendo escuridão quando deveria haver luz. Eu buscava amedrontado estes sinais. Uma formação de nuvens, cirros-estratos, cúmulos nimbos ou outras, cujos nomes em latim eu esqueci como relacionar às formas. Observava à tarde se o céu se cobria de vermelho no poente ou molhava o dedo entre os lábios e o estendia para cima procurando um vento que costuma soprar lá do sul e trazem as frentes frias. Assim eu poderia me precaver. Talvez, quem sabe...

Eu queria acreditar que não haveria mais tempestades como àquelas, inundando o meu mundo. Trazendo confusão à calmaria. Que só restariam os resquícios e mesmos estes, aos poucos deveriam desaparecer com o passar do tempo, tornando-se raras lembranças como objetos numa caixa velha de papelão que vez ou outra fuçamos saudosos.

Eu queria acreditar que outras não virão. Derrubando árvores, destelhando casas e inundando as ruas. Mas no fundo eu sei. Aquela primeira tempestade foi só uma conseqüência menor de uma mudança climática irreversível. Que outras maiores ocorrerão trazendo mais destruição. O que me resta é segurar firme no barco do hoje e seguir vivendo um dia de cada vez com a pouca fé que ainda me resta. E agradecer a Deus quando me levantar de manhã e o sol estiver brilhando num céu azul e só soprar uma brisa fresca, daquelas que secam o suor que teima em escorrer pela face.

Hoje só há a calmaria.

Aquela típica mansidão dos elementos que prenunciam uma terrível tempestade...


Agnaldo Garcia


sábado, 25 de junho de 2011

O Mito das Almas Partidas




Conta uma lenda cretense cuja narração havia se perdido nas areias do tempo e que recentemente foi descoberta em fragmentos de pergaminhos, que no princípio de tudo os homens eram seres etéreos e eternos feitos de pura energia. Neles, os gêneros masculino e feminino fundiam-se num só ser poderoso e feliz por sua completude. Estes seres possuíam todas as qualidades de ambos os sexos.

Moviam-se pelos ares ou através da matéria felizes e exuberantes em sua forma energética. Não sentiam solidão, pois se autocompletavam e viviam satisfeitos com sua condição andrógina. O fato de estarem fundidos lhes conferia pleno domínio dos sentidos e ampla vivacidade.





Tais condições acenderam a ira e inveja dos deuses do Olimpo que foram queixar-se a Zeus ou Júpiter o criador destas majestosas criaturas. Todos os homens possuíam na plenitude todas as características valorizadas pela cultura helênica. Beleza, inteligência, sabedoria e bondade abundavam neles. E os deuses que eram conhecidos cada um por uma qualidade destas das quais se sobressaíam, argumentaram com o soberano dos deuses que os humanos assim como se encontravam eram em sua essência mais poderosos que eles próprios e poderiam sobrepujá-los em carisma ante os outros habitantes da terra e assim se tornariam objeto de adoração substituindo aos deuses em seus corações. Naquela época outros seres como elfos, sátiros, musas e centauros povoavam a terra.

Houve então uma assembleia no Olimpo para decidir o futuro da humanidade, onde se reuniram os doze principais deuses. Zeus a cabeceira deu voz a todos que falassem. Áries, o deus da guerra, manifestou-se primeiro e propôs que Zeus permitisse que sobre o seu comando, os titãs fossem libertados e despejassem sua fúria contra a terra destruindo os humanos, mandando-os para o interior do planeta aos cuidados de Hades o guardião do inferno. A bondosa Atena, a deusa da sabedoria e Afrodite, a deusa da beleza e do amor, intervieram com veemência contra a trágica ideia de Áries convencendo ao rei dos deuses que a humanidade não era merecedora de tão abominável destino. Depois de muita discussão entre pequenos senões acabou por prevalecer a ideia de Hera, a influente esposa de Zeus.

Foi decretado que a humanidade não deveria rivalizar em poder com os deuses e para isto algumas providências seriam tomadas.

Zeus com seus raios poderosos deveria cortar estes seres ao meio, separando-os em duas partes: a masculina e a feminina deveriam subsistir em separado. Para que essa condição fosse perpétua, Hefesto deveria fabricar-lhes corpos físicos aos quais se prenderiam suas almas de modo que não pudessem continuar vivos sem a casca de carne e nem juntar-se, senão em breves momentos de conjunção espiritual. Também foi abreviado o tempo de existência destes invólucros corpóreos de modo que estes seres perdessem a memória de eternidade e revivessem em cada existência sem lembrança alguma da ocupação anterior. Quanto às qualidades, elas deveriam ser limitadas para cada ser, como aos deuses, tornando-os notáveis em apenas algumas, de modo que cada uma de suas almas divididas recebesse uma porção delas. Não satisfeita ainda, à deusa Hera, vilã da humanidade, sugeriu com a força de sua posição de esposa de Zeus que as almas gêmeas raramente deveriam se reconhecer mutuamente de modo que o encontro de dois destes seres se tornassem eventos raros e fortuitos.

Assim foi...

Está explicado então: a culpa é dos deuses de tantos desencontros. Por tanta gente no mundo e este sentimento absoluto de existir só que experimentamos às vezes mesmo abraçados e protegidos pelos nossos entes mais queridos. Esta sensação de que falta um pedaço, uma parte tão importante de nós, que alguns buscam mesmo sem esperança de êxito por toda uma vida, enquanto outros fingindo não se importar desistem de procurar dizendo-se felizes em estar sozinhos mesmo sem disfarçar um semblante amargo de quem é pedaço de si mesmo apenas. Outros tentam acomodar-se em partes não compatíveis a si como a criança inexperiente que insiste encaixar peças erradas de um quebra-cabeça.

Bendizei então a vossa sorte se encontrardes alguém que vos encaixe à alma...

Terás encontrado a vossa alma metade, ao menos por um breve período durante esta curta existência. Para a contrariedade dos deuses.

Agnaldo Garcia

domingo, 12 de junho de 2011

Do Amor






Quando o amor vos chamar, segui-o,

Embora seus caminhos sejam agrestes e escarpados;

E quando ele vos envolver com suas asas, cedei-lhe,

Embora a espada oculta na sua plumagem possa ferir-vos;

E quando ele vos falar, acreditai nele,

Embora sua voz possa despedaçar vossos sonhos

Como o vento devasta o jardim.

Pois, da mesma forma que o amor vos coroa,

Assim ele vos crucifica.

E da mesma forma que contribui para vosso crescimento,

Trabalha para vossa queda.

E da mesma forma que alcança vossa altura

E acaricia vossos ramos mais tenros que se embalam ao sol,

Assim também desce até vossas raízes

E as sacode no seu apego à terra.

Como feixes de trigo, ele vos aperta junto ao seu coração.

Ele vos debulha para expor vossa nudez.

Ele vos peneira para libertar-vos das palhas.

Ele vos mói até a extrema brancura.

Ele vos amassa até que vos torneis maleáveis.

Então, ele vos leva ao fogo sagrado e vos transforma

No pão místico do banquete divino.

Todas essas coisas, o amor operará em vós

Para que conheçais os segredos de vossos corações

E, com esse conhecimento,

Vos convertais no pão místico do banquete divino.

Todavia, se no vosso temor,

Procurardes somente a paz do amor e o gozo do amor,

Então seria melhor para vós que cobrísseis vossa nudez

E abandonásseis a eira do amor,

Para entrar num mundo sem estações,

Onde rireis, mas não todos os vossos risos,

E chorareis, mas não todas as vossas lágrimas.

O amor nada dá senão de si próprio

E nada recebe senão de si próprio.

O amor não possui, nem se deixa possuir.

Porque o amor basta-se a si mesmo.

Quando um de vós ama, que não diga:

“Deus está no meu coração”,

Mas que diga antes:

"Eu estou no coração de Deus”.

E não imagineis que possais dirigir o curso do amor,

Pois o amor, se vos achar dignos,

Determinará ele próprio o vosso curso.

O amor não tem outro desejo

Senão o de atingir a sua plenitude.

Se, contudo, amardes e precisardes ter desejos,

Sejam estes os vossos desejos:

De vos diluirdes no amor e serdes como um riacho

Que canta sua melodia para a noite;

De conhecerdes a dor de sentir ternura demasiada;

De ficardes feridos por vossa própria compreensão do amor

E de sangrardes de boa vontade e com alegria;

De acordardes na aurora com o coração alado

E agradecerdes por um novo dia de amor;

De descansardes ao meio-dia

E meditardes sobre o êxtase do amor;

De voltardes para casa à noite com gratidão;

E de adormecerdes com uma prece no coração para o bem-amado,

E nos lábios uma canção de bem-aventurança.

Khali Gibran


sábado, 4 de junho de 2011

A Guerreira e o Dragão Negro


Na mitologia visigoda, Rita era uma grande guerreira que travou uma luta feroz contra um dragão negro. Ela carregava sobre sua cabeça um elmo emplumado que a protegia das maléficas emissões de fluidos ectoplásmicos da criatura. Lembrava muito a deusa Athena pelas suas vestimentas e apetrechos de guerra que carregava imponente. Entre estes apetrechos, encontrava-se em sua mão direita uma lança com a qual desferia firmes e certeiros golpes no dragão que persistia maldosamente em atacar a sua aldeia.

Em tempos de paz, Rita era uma sábia aldeã que instruía os jovens aventureiros pelas sendas da vida. Ela era mestra em orientar caminhos e muito hábil na arte de produzir mapas que indicavam pontos de partida e de chegada. Diz a lenda que um dia de surpresa, ao cair da noite como é da preferência das criaturas maléficas, enquanto Rita aquecia-se em torno da fogueira no aconchego de sua casa, eis que um dragão pavoroso atacou sua aldeia. Surpreendentemente, a moça de traços delicados e personalidade aparentemente insegura transfigurou-se de coragem e resignada determinação para enfrentar a batalha contra o ser das trevas. Os moradores da aldeia espantaram-se com a atitude até então inesperada da jovem aldeã. Enquanto o dragão rugia e cuspia fogo, ameaçando tornar em cinzas o seu mundo, ela correu para o depósito de armas e tomou para si um escudo que daquele momento em diante, passou a empunhar nas batalhas, preso ao seu braço esquerdo junto a lança que segurava firme na mão direita. Partiu assim em embate contra o dragão, enquanto outros de ditosa coragem fugiam amedrontados pelos bosques adentro, desaparecendo para sempre na escuridão da noite.

O dragão negro, enfeitiçado por um mago diabólico que desejava destruir a aldeia, atacava sempre à noite e era rechaçado sem tréguas pela guerreira. Durante o dia, ela exausta repousava enquanto o dragão ferido fugia para a floresta para se recompor e voltar a atacar. Na terceira noite de ataque ela sentiu-se tão exausta que quase sucumbiu, mas manteve bravamente o escudo erguido, pois sabia que a derrocada da fera estava próxima.

Numa noite fria de agosto o dragão lançou seu último ataque. A guerreira ergueu o braço cansado e cravou-lhe a lança no coração, ponto mortal e frágil destas criaturas mágicas, e triunfou sobre a fera esmagando-lhe a cabeça com o ferrolho de suas sandálias.

Rita voltou a ser então a sábia moça aldeã vivendo feliz em sua pacata aldeia.

Dedicado à amiga e professora de geografia Rita de Cássia Marino, cuja batalha contra o dragão negro, pela fé já está vencida.


Agnaldo Garcia

sábado, 14 de maio de 2011

A Arte de Deixar Ir



Nos afeiçoamos as coisas e as pessoas sem nos darmos conta que tanto os seres vivos como também os objetos tem alma ou forma metafísica. Às vezes estas coisas ou pessoas as quais nos afeiçoamos assumem a forma de areia que escorrem pelos nossos dedos quando tentamos nos agarrar a elas. Outra hora elas são pequenos blocos de gelo, que não suportam nossa energia. Aquecem com o calor de nossa vontade, derretem e evaporam diante de nossos olhos. Ai, decepcionar-se e magoar-se serão constantes em nossa trajetória nesta imensa bola azul. O ideal é que não criemos expectativas, tudo na vida tem caráter essencialmente transitório, a única regra é a mudança, enfim apegar-se demais é sofrer... É aceitar e deixar ir em nosso interior...Como Diógenes e Chaves, para viver basta apenas um barril.

Às vezes as coisas/pessoas assumem a forma boomerang e retornam para diante de nossos olhos.. Às vezes caem surpreendentemente sobre nós como boas bênçãos, feito chuva após longa e insólita estiagem. Mas tudo isso só porque querem, não por nossa vontade. Podem ser pedras também, que atiramos e não retornam, mas nos trazem consequências boas ou ruins.

Agnaldo Garcia

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Um minuto de Silêncio


Final de semana, domingo dia de assistir a um jogo de futebol. Para alguns, cultura inútil que em nada acrescenta. Eu não penso assim, acho que a gente consegue aprender observando qualquer situação, ou vendo qualquer coisa na TV, por exemplo, até mesmo o Big Brother. É sempre uma aula de antropologia ver primatas evoluídos, trancafiados e sendo observados vinte e quatro horas por dia. Ver que o comportamento é sempre padrão. Divisão em grupos, conflitos, machos alfa, o que mostra que não somos tão diferentes assim dos chimpanzés, não é mesmo? Só que como somos mais inteligentes, também nos tornamos mais letais.

Antes de iniciar a partida pelo campeonato paulista, o árbitro pede que os jogadores se dirijam para o círculo do meio campo para que seja respeitado um minuto de silêncio, em homenagem às vítimas do terremoto no Japão. A homenagem é anunciada nos autofalantes do estádio, para os torcedores que entusiasmados gritam palavras de ordem, mostrando o seu amor pelo time do coração. O “minuto de silêncio” ocorre e é totalmente ignorado pela torcida que continua ovacionando o seu time. Assim também acontece durante a execução do hino nacional.

Como o jogo estivesse monótono eu comecei a zapear. Nada de interessante na televisão, que maçada! Até que me deparei com uma partida pelo campeonato inglês. Antes do início, um cenário bem parecido com o do nosso. A torcida animada, só que mais vestida por causa do rigor do inverno europeu. Então o juiz apita para que os participantes guardem um minuto de silêncio, não sei se pelo mesmo motivo. Silêncio total no estádio! Poderia se ouvir tranquilamente o choro de uma criança. Mas nem isso. Até chamei meu filho para assistir e comparar os dois eventos.

Foi só um exemplo para ilustrar um pensamento que eu sempre compartilho quando dialogo com as pessoas sobre civilidade que para mim pode ser resumida como “a arte de não furar fila e não jogar lixo na rua”.

Nós brasileiros como povo somos lamentáveis. Há muito que evoluir...

Eu proponho agora para quem estiver lendo este texto, um minuto de silêncio e reflexão sobre a nossa falta de civilidade/educação.

Agnaldo Garcia

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Os Ombros Suportam o Mundo



Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.


Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 16 de abril de 2011

O Quarto

“Eu não acredito em fantasmas. Mas tenho medo deles.”

Lord Byron

Lembro como se fosse hoje. Ainda me dá calafrios, um estremecimento gelado que sobe pela espinha e apalpa o estômago. Uma contração involuntária do corpo querendo se ajeitar na cama, em posição fetal, ante o terror da lembrança e a mente convulsionando em busca de explicar em vão o inexplicável. Ao mesmo tempo, em função desta minha mania de enxergar o copo sempre meio cheio, tal episódio sedimentou-me no íntimo do espírito a fé inabalável de que a vida segue em frente depois que a carne fenece.

Poderia dizer que sentia arrepios nos últimos dias quando atravessava o corredor que dava para os quartos da casa. Mas pode ser a minha imaginação me pregando peças, querendo juntar fatos desconexos que a nossa mente lógica teima em transformar sempre em padrões. Eu e minha sobrinha Eulália tínhamos acabado de assistir a um filme na TV e íamos dormir. A casa antiga, do início do século XX possuía assoalho de madeira de modo que quando a gente andava, o chão rangia levemente sob nossos pés. Em qualquer hora do dia seria impossível perceber o leve rangido, mas àquelas horas da noite com o silêncio absoluto que reinava depois que a TV fora desligada, o barulho parecia alto o suficiente para causar apreensão e aguçar a imaginação de uma mente supersticiosa. Para chegar até nossos quartos, tínhamos que atravessar o corredor até o final e passar pela porta do quarto de meus pais e depois pela de minha irmã Fernanda e eu sempre fazia este caminho à noite ás vezes sozinha, quando a insônia me perseguia.

A luz tênue de uma lâmpada incandescente de 40 watts dava um ar sombrio ao corredor àquelas horas da noite. Pra não ajudar, ainda comecei lembrar os “causos” arrepiantes que o meu avô Joaquim contava às vezes à beira da fogueira no sítio só pra que as sombras produzissem figuras fantasmagóricas e desse um grau maior de credibilidade às suas palavras. Não sei por que nesta hora, me veio à memória de um caso que ele repetia inúmeras vezes como emérito contador de histórias que era. Um dia, ele e um de seus compadres foram passar a noite em um local onde iriam trabalhar. Instalaram-se numa casinha simples de madeira com teto de algum tipo de fibra vegetal, onde é claro não havia luz elétrica. O ambiente só era iluminado por uma tênue lamparina, que eles haviam levado entre as tralhas de trabalho. Após o jantar simples preparado em uma fogueira improvisada regado a uma boa conversa, apagaram a lamparina e foram dormir. Meu avô disse que já estava dormindo há um bom tempo, quando acordou à meia noite, com uma forte luz que vinha de fora, e foi entrando pela choupana, iluminando completamente um pequeno cômodo que dava de frente para o quarto. Então, tremendo de medo, ele se cobriu dos pés à cabeça com o lençol, mas mesmo assim continuou a ver a luz, que estava cada vez mais perto de sua cama. Apavorado com esse fato, começou a rezar e como último recurso disse num tom de voz entrecortado e trêmulo:

___Se o que estiver ai não for coisa desse mundo, se afasta de mim que eu não resisto!

Segundo meu avô, após esta súplica a luz instantaneamente se apagou e a cabana escureceu completamente. No outro dia ele contou a história para os companheiros que haviam dormido tranquilamente à noite inteira e riram dele, dizendo que ele não deveria ter trazido cachaça escondido e que fora muita falta de consideração da parte dele ter bebido tudo sozinho.

Engraçado como funciona a cabeça da gente, porque todas estas lembranças inundaram a minha mente num espaço tão curto de tempo, quando eu apenas havia dado dois ou três tímidos passos em direção ao corredor. Neste intervalo ainda pensei em algumas histórias que meu pai, outro bom contador de causos relatara de visões que tinha tido naquela casa ou de quando ouvira cadeiras na sala ou o sofá sendo arrastado de madrugada.

E eu dizia para mim mesma apavorada:

___Nunca mais! Nunca mais ficarei até tarde vendo TV na sala!

Minha sobrinha também muito assustada agarrada ao meu braço, instintivamente mantinha os passos um pouco atrás dos meus. E aquele corredor nunca pareceu tão comprido!

Ao passar pelo quarto de minha irmã, a porta pareceu bater levemente, como se uma brisa a tivesse empurrado, mas o curioso é que meu subconsciente registrou certo sentimento de medo, que eu não deixei aflorar. Na hora não o percebi creio eu, mas refletindo agora posso dizer que o sentia. Quando finalmente chegamos à porta do quarto despedi-me de Eulália e pulei rápido sob os lençóis ainda trocando de roupa, enquanto podia ouvir os movimentos dela e ver por baixo da porta a luminosidade da lâmpada acesa de seu quarto. Agradeci a Deus por ser mais ágil, e imaginei que a pobre deveria estar mais apavorada do que eu.

Custei algum tempo para pegar no sono. Dormi pouco se bem me lembro, quase nada. Oscilei entre a total consciência dos sentidos e aquele período que antecede ao sono e se está entre acordado e quase dormindo, quando ainda se pode perceber os sons à nossa volta e aos quais, às vezes, incorporamos à algum sonho. Neste prelúdio meus ouvidos atentaram para um barulho incomum àquelas horas da madrugada. Despertei do estado de sonolência e apurei os ouvidos buscando entender o que se passava. O som parecia vir do quarto de minha irmã. A cama dela parecia ranger como se estivesse sendo insistentemente arrastada. Irritada por ter sido tão inconvenientemente trazida do sono, eu balbuciei entre um bocejo e outro: "Caramba, que tanto a Fernanda arrasta este raio de cama?". Pensei em levantar e ir até o quarto dela para verificar o motivo de sua inquietação, mas fui desencorajada pela sonolência e o meu medo do escuro. Entorpecida, virei para o lado e em poucos segundos adormecia novamente.

Não sei precisar quanto tempo se passou. Talvez quinze ou trinta minutos, já que quando dormimos o tempo decorre num ritmo diferente da vigília, mas acordei novamente de súbito, desta vez com a voz da minha irmã chorando e batendo desesperadamente na porta do quarto onde dormiam os meus pais, suplicando por ajuda. Ela gritava em alto e bom som que um espírito a estava perturbando! Firmei os olhos e olhei para o mostrador do despertador antes de deixar o quarto buscando abrigo na companhia dos meus familiares. Era meia-noite!

Todos se levantaram apavorados. Eulália, segurando minha mão, chorava de medo. Suas mãos estavam geladas. Tão frias que eu ainda hoje tenho a sensação do toque gelado quando me lembro desta história. Meu pai parecia muito assustado e zangado tentando acalmar minha irmã para que ela contasse o que havia ocorrido, enquanto minha mãe, sempre solícita nesta hora já trazia um copo com água e açúcar e insistiu para que Juliana a tomasse para “acalmar os nervos”.

Quando ela se acalmou começou a relatar o que havia ocorrido, enquanto nós nos ajeitávamos no sofá, curiosos por ouvir o que ela tinha a dizer. Foi narrando os fatos e às vezes entrecortava a sua fala com um soluço enquanto minha mãe que a havia abraçado afagava a sua cabeça. Dizia que antes de dormir resolvera rezar, e todos se entreolharam com estranheza já que ela não era nada de rezas. Abraçou os joelhos com as mãos e sempre apoiada por minha mãe continuou a contar que enquanto estava rezando sentiu uma mão “misteriosa” pousar sobre a sua. Num impulso pensou em recolher as mãos, mas uma ideia a deteve: Se estava rezando então deveria ser um anjo e por um instante seu coração se encheu de alegria. Foi então que sentiu com surpresa um primeiro beliscão e recolheu a mão instintivamente, porque logo sucederam outros.

Assustada, pulou da cama e foi até a escrivaninha de madeira onde havia duas gavetas e um espelho em formato elíptico. Sobre a escrivaninha encontrava-se um pequeno vaso onde murchavam meia dúzia de rosas que ela apanhara na manhã anterior no jardim em frente a casa. Numa das gavetas pegou um evangelho espírita, que se encontrava perdido entre alguns papéis, com a intenção de fazer uma prece. Enquanto tentava ler o evangelho, a porta do quarto fechou-se com força como quando alguém zangado bate uma porta e embora ela tentasse deixar a porta aberta por três vezes o espírito ruim ou sei lá que outra força atuasse ali naquele momento a impedia, batendo a porta com fúria. Na quarta tentativa, ela escorou a porta com a cômoda, deixando cair o vaso que partiu no gargalo e espalhou as rosas pelo chão. Mas obteve sucesso em deixar a porta aberta.

Já lhe tremia o corpo todo quando corajosamente tentou retomar a leitura do evangelho, mas era interrompida, pois sentia o tempo todo seus cabelos serem remexidos e a luz acendia e apagava como se houvesse ali uma criança invisível ou um espírito zombeteiro lhe pregando peças. Não suportando mais, pulou da cama e correu até o quarto de meus pais batendo desesperadamente na porta e foi quando todos nós acordamos.

Este, sem dúvidas, foi o fato mais estranho que aconteceu com a minha família. Acredito em espíritos, mas não sou uma crédula tola que atribui tudo o que acontece a nossa volta e não podemos explicar a obras de espíritos. Quanto ao fenômeno ocorrido com minha irmã eu posso dar fé como testemunha, pois presenciei uma parte da situação narrada por ela, então posso afirmar, a menos que a nossa família tenha sofrido de um caso de alucinação coletiva ou algo assim, que o que ela disse era bem real.

Segundo minha mãe que é espírita, a qual eu considero muito sábia pela sua vivência e observação das coisas, naquela época, minha irmã estava mal acompanhada espiritualmente, pois passava por uma fase de rebeldia, demonstrando ingratidão para conosco que a amávamos e era muito briguenta e turrona. Esta experiência fez com que ela refletisse um pouco sobre suas atitudes e se tornasse uma pessoa melhor, voltando novamente a respeitar os valores familiares.

Naquela mesma noite e a partir de então, minha irmã ficou por um longo tempo dormindo no meu quarto e estendia o colchão ao lado de minha cama. Ela, que tanto brigava comigo! E por um bom tempo dormi imersa até o último pelo da cabeça sob os lençóis.


Inspirado nos relatos da amiga e professora Silvia Canônico da cidade de Araraquara

Agnaldo Garcia

sexta-feira, 8 de abril de 2011

O Vento Finalmente

Sem dúvida nenhuma a culpa é do vento.

Porque tem dias que a gente levanta de manhã com a mente tão esvaziada e agradece a Deus por que não pode pensar em nada e nem quer pensar em nada e assim não se aborrecer ou ficar triste com nenhuma lembrança deste recorte de situações interrompidas pelo passeio do sol pela esfera terrestre que nós chamamos de dia. Só no café fumegando no coador e mesmo assim por causa do cheiro fresco que ele exala e rescende por toda a casa trazido pelo vento e daquele prazer quase sexual que a gente sente quando ele amargamente desce goela abaixo depois de embaçar a lente do óculos. Fora isso a mente segue tão vazia quanto o estômago antes que eu engula o primeiro pedaço de pão mastigado as pressas por causa da quentura do microondas. E a gente nem se importa com a margarina derretida que escorre pela boca. E o silêncio que reina ainda nestas horas da manhã, fora aqui ou ali uma briga de pardal por algum inseto que serve de breakfast, ou os casais de maritacas felizes propagando aos quatro vento o seu eterna estado monogâmico. Momentos em que a gente sente uma melancolia de vontade de não estar aqui mais sem saber porque estes pensamentos pegam a gente assim porque ainda não existe o vento soprando e trazendo os sons baixinhos lá de fora além da luta belicosa dos pardais e o canto de felicidade das maritacas. O sol ainda tímido desponta frio num verão tórrido como estes últimos. Surpreendentemente procuro o sol sob minhas costas, porque nesta manhã o vento que ainda não veio aqui dentro pela janela resfriou o verão escaldante.

O vento sempre acaba soprando em algum momento. De surpresa e muito rapidamente como tudo que há de bom na vida, ocorre assim sem que possamos nos dar conta de que ocorreram e possamos tirar o máximo de proveito deles. E depois só fica uma saudade melancólica que teima em provocar uma dorzinha incômoda lá na “pontinha do coração”. Dor, que se pudesse ser traduzida num desabafo, daqueles que a gente, sem pensar, despeja para o mundo direcionado ou não, de vez em quando, sairia mais ou menos assim: “Nunca mais eu igual”. Ele sempre trás coisas de longe, como aquele tecido branco que insiste em flutuar sobre o éter a minha volta e como um véu compromete a minha visão. E nestes momentos a gente só pode é fechar os olhos e ver as coisas pelos olhos do coração, me arrancando de mim e prometendo que eu nunca mais vou sorrir a vontade sem que algum músculo contraído da minha face marque um ponto perdido de saudade nos rincões do tempo. Que apesar de tudo de bom ou de ruim que eu irei atravessar certas lembranças impregnadas ficarão como aquelas fotos antigas que, desgastadas pelo tempo, desbotam mais ainda mas conservam registradas pixels de memória de um instante congelado e precioso e que mesmo que nós pudéssemos apagar de nossas mentes e corações não íamos querer porque assim pareceria cometer um pecado imperdoável contra a maior de todas as forças do cosmo.

Só o vento soprando assim. Um vento carregado de umidade nestes dias de verão absurdamente quentes trouxe uma lembrança triste de lugares em que eu nunca estive e momentos que eu nunca vivi. Como aquela música que a gente houve pela primeira vez e conversa com a nossa alma. E nos faz perceber coisas que surpreendentemente eram tão preciosas e estavam o tempo todo conosco, mas nem nos dávamos contas.

O vento me lembrou de um sonho terrível de morte que eu tive esta noite. E dele acordei pelas três da madrugada, suava de agonia. Levantei fui até a cama de minha filha, apalpei a sua testa e apoiei as costas de minha mão como a verificar que o sonho que eu tivera não havia sido um prenuncio ruim. E fiquei ali durante um tempo ao pé de sua cama lembrando de todas as expressões de sua face, de momentos bons de ela sorrindo feliz ao meu lado. Remoendo instantes em que eu me julgava realizando coisas muito importantes que não lhe pudesse dar a atenção merecida e um sentimento de remorso me tomou por algum tempo. Então toquei mais uma vez a sua fronte, beijei-lhe a testa cheia de cabelo e tentei por alguns longos minutos retomar o sono porque amanhã afinal, tudo começa mais ou menos como no dia anterior, já que a impressão causada por este sonho vai ficar marcada em minhas lembranças, mas desaparecerá um dia como a onda formada por uma pedra lançada sobre a água.

Pela manhã depois de tomar meu café a acordei com um beijo e me retive num pensamento deveras desconfortável. Que o que eu vi no sonho poderia acontecer, eu poderia perdê-la a qualquer momento e por isso a segurei com mais força quando ela ressonando e de mau humor como agora todos os dias de manhã tentasse se livrar do meu abraço. Eu sorri agradecendo a Deus que eu a tivesse ainda ali comigo.

Lembrei-me do meu tio e só agora eu pude de leve dimensionar toda a dor que ele ter experimentado quando perdeu seus filhos. Eu nunca havia dimensionado como isto pode ser terrível para alguém até então e eu nem havia me dado conta disso. Este pensamento me fez ir até ela e abraçá-la muito forte até que ela reclamasse e me afastasse num gesto de protesto.

Uma amiga que escreve muito bem me mandou uma mensagem de aniversário hoje, embora meu aniversário seja daqui a alguns dias. Às vezes a gente tem coisas a dizer que não precisam esperar datas especiais, como aquelas roupas, as melhores, que guardamos sempre para ocasiões especiais e quase nunca usamos. Talvez nem haja tempo para usá-las.

A gente vai vivendo e conhecendo pessoas sem o menor “fair play”, mas quando encontra algumas que dão “show de bola” no jogo da vida é impossível não se encantar. Pessoas que conhecemos a tão pouco tempo, mas que já apreciamos tanto que quase faz crer que em outros tempos ou reencarnações nos foram muito familiares, como uma irmã, um tio ou o avô gente boa.

E como você disse neste recado singelo minha amiga, depois dos 40, 41, precisamente aos 42, tudo parece mudar, permanecemos olhando para trás um bom tempo e nos habituamos tanto a isso que nem vemos as pedras no caminho e tropeçamos um monte de vezes de forma que nossos joelhos e cotovelos vão ficando em carne viva. O lado bom disso é que vamos aprendendo a nos levantar cada vez com mais dignidade e graça e as feridas vão criando casca de maneira que depois de algum tempo, uma casca dura protege de feridas novas. Acostumamos-nos também a torcer para que estas pedras amoleçam e se firam como nós, não por vingança, mas para que aprendam com os erros e sofrimentos. E vamos, apesar de moles, nos lapidando como os duros diamantes e nos tornando capazes de sentir a dor dos outros, quando os escorpiões são cruéis com quem estimamos e assim , sabendo que sempre vamos encontrar estas pedras por amolecer no caminho, seguimos procurando esquecer o futuro incerto.

Já sabemos um tantinho da vida, sabemos olhar e definir o quão importante é ou não aquela, aquele ou aquilo.

Sei que você ainda é bem jovem e tem a pele grossa ainda, rsrsrsrsrsrsrs... Mas desde quando cronologia define a verdadeira idade, não é? Afinal, a passagem do tempo de forma contínua é pura invenção dos homens. Já ficou uma hora no dentista? É igual a uma hora num quiosque tomando umas com os amigos?

E é assim mesmo que a vida segue, descobrimos que nossos herois, aqueles que pareciam ter a capacidade de salvar o mundo, ou pelo menos o nosso time do coração, são tão humanos como nós, brigando contra a balança ou um hipotireoidismo. Por um tempo tudo parece irremediavelmente sem solução. Temos a impressão de que o mundo inteiro vai desabar sobre nossas costas. Depois tudo melhora, até o Corinthians... Nesta montanha-russa gigante que é a vida.

Agnaldo Garcia

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Um Dia Ruim

“(...) Já não dirão que estou resignado

E perdi os melhores dias.

Dentro de mim, bem no fundo,

há reservas colossais de tempo,...”

Carlos Drummond de Andrade


Hoje decididamente amanheci de mal comigo e com o mundo.

Eram nove da manhã ou algo assim se mal me lembro porque a noite havia passado em mim. Os olhos ainda turvos mal conseguiram visualizar o relógio, quando acordei. Esfreguei os olhos estranhando que a claridade não houvesse invadido ainda o quarto pelas frestas da janela formando imagens quase indistintas do verde lá de fora e do azul do céu nas paredes brancas ao lado da minha cama.

Em dias ensolarados e preguiçosos, fico abotoado aos lençóis tentando imaginar qual imagem dá origem a cada borrão que aparece ou o que representa um vulto que atravessa a luz projetada. Vez em quando um pensamento me abduz e viajo por horas ou segundos apenas... Sei lá. Pensamentos que tomam formas de pessoas com as quais travo conversas mexendo os lábios, falando baixinho com ninguém ou comigo mesmo o que às vezes dá no mesmo...

Ai! Maldita torcicolo!

Antes tivesse ficado na posição fetal em que me encontrava por mais alguns minutos, horas, dias... Enfim... Movi o pescoço num movimento de contorção. Ele estalou e eu melhorei um pouco.

Abri a janela. O céu grosso de nuvens pesadas de azul-negro ameaçava a qualquer momento precipitar sobre a terra toneladas de água. Permaneci estático por algum tempo experimentando o vento úmido e o cheiro de terra molhada, típico destes dias chuvosos de dezembro. Respingos tênues trazidos pelo vento invadiram o quarto pelo vão da janela. Então eu a fechei. Os olhos acostumados à claridade me fizeram tatear a escuridão por causa da cegueira momentânea. Busquei o caminho para os outros cômodos da casa, certo de que a qualquer momento um chinelo mal colocado na noite anterior pudesse surgir de surpresa e comprometer de vez o meu equilíbrio capenga de sonolência me deixando ainda mais zangado. Tipo quando a gente dá com o dedo do pé no cantinho da porta e começa a ofender a mãe da pobre madeira morta.

Não quero falar hoje, por isso evito qualquer forma de contato humano. Passo pela cozinha rezando para que ninguém me note. Que eu seja invisível! Palavras são inoportunas quando não se tem nada de agradável a dizer. Eu podia gritar um palavrão qualquer, só para extravasar. Entretanto nem isso... O que eu quero mesmo neste dia-noite é ficar aqui no canto escuro da sala com a cortina fechada, tomando este café preto e quando ele acabar eu vou simplesmente deixar a xícara ao lado e ficar espreguiçadamente recostado, com a bunda presa ao sofá. Só arquivando boas lembranças na memória. Como em “O Velho e o Mar” de Hemingway quando Santiago conversa com o menino que o ajudava, ele quase não menciona os oitenta dias em que não pescou um só peixe. Ao invés disso sempre rememora as pescarias bem sucedidas onde apanhou enormes pescados.

Mas hoje eu não quero falar!

Só quero ficar aqui recostado no meu canto, mosqueando estes pensamentos, digerindo memórias destes dias ruins cujas reminiscências escorrem pela alma tal qual a enxurrada desta chuva que cai lá fora. Que a água leve pelo bueiro estas lembranças.

Estes dias têm sido sempre assim, indigestos. Mastigo-os e os engulo mesmo que eles me causem ânsias de vômito.

Ainda bem ou não que nada dure para sempre, nem mesmo esses dias ou outros melhores. Nem alguns bodes que a gente cria de vez em quando e esquece em algum buraco no fundo da memória. E quando pensamos que estamos livres eles aparecem feito piolhos ou como àquele pó da casa que todo dia varremos para fora de nossa existência sabendo que amanhã outros tais estarão nos mesmos lugares.

Estou me sentindo velho hoje, cheio de gavetas. Acordei com cento e dez anos, dois meses e alguns dias. Gavetas cheias de bugigangas empoeiradas e papéis velhos que a gente vai acumulando desleixadamente porque ou tem dó ou preguiça de jogar fora. De onde a gente de vez em quando fuça ideias antiquadas, ainda de outras eras.

Meus velhos ossos doem e se partem e minha artrite está acabando comigo. Por isso a posição fetal na cama quando acordei. Porque paradoxalmente quando se envelhece parte de você volta a ser criança. Até ontem ainda, eu era só um adolescente, pensando na Fulana como Drummond. Mas hoje eu me sinto velho como ele neste trecho de poema: “Sinto que o tempo sobre mim abate sua mão pesada. Rugas, dentes, calva... Uma aceitação maior de tudo, e o medo de novas descobertas...”

Hoje eu não quero descobrir nada, saber nada, só simplesmente aceitar que eu posso ficar um dia inteiro assim encruado dentro de mim mesmo, como o velho Santiago no mar. Sozinho, já que é assim que a gente nasce. E assim também a gente morre. O mar é a metáfora da vida. Nele estamos sós num barco arriscando ir cada vez mais longe da costa sempre atrás de um grande peixe. E depois, se o pegamos, vêm os tubarões e os devoram, deixando-nos apenas os ossos, além de um orgulho besta e a exaustão pela luta vã...




Agnaldo Garcia