“Eu não acredito em fantasmas. Mas tenho medo deles.”
Lord Byron
Lembro como se fosse hoje. Ainda me dá calafrios, um estremecimento gelado que sobe pela espinha e apalpa o estômago. Uma contração involuntária do corpo querendo se ajeitar na cama, em posição fetal, ante o terror da lembrança e a mente convulsionando em busca de explicar em vão o inexplicável. Ao mesmo tempo, em função desta minha mania de enxergar o copo sempre meio cheio, tal episódio sedimentou-me no íntimo do espírito a fé inabalável de que a vida segue em frente depois que a carne fenece.
Poderia dizer que sentia arrepios nos últimos dias quando atravessava o corredor que dava para os quartos da casa. Mas pode ser a minha imaginação me pregando peças, querendo juntar fatos desconexos que a nossa mente lógica teima em transformar sempre em padrões. Eu e minha sobrinha Eulália tínhamos acabado de assistir a um filme na TV e íamos dormir. A casa antiga, do início do século XX possuía assoalho de madeira de modo que quando a gente andava, o chão rangia levemente sob nossos pés. Em qualquer hora do dia seria impossível perceber o leve rangido, mas àquelas horas da noite com o silêncio absoluto que reinava depois que a TV fora desligada, o barulho parecia alto o suficiente para causar apreensão e aguçar a imaginação de uma mente supersticiosa. Para chegar até nossos quartos, tínhamos que atravessar o corredor até o final e passar pela porta do quarto de meus pais e depois pela de minha irmã Fernanda e eu sempre fazia este caminho à noite ás vezes sozinha, quando a insônia me perseguia.
A luz tênue de uma lâmpada incandescente de 40 watts dava um ar sombrio ao corredor àquelas horas da noite. Pra não ajudar, ainda comecei lembrar os “causos” arrepiantes que o meu avô Joaquim contava às vezes à beira da fogueira no sítio só pra que as sombras produzissem figuras fantasmagóricas e desse um grau maior de credibilidade às suas palavras. Não sei por que nesta hora, me veio à memória de um caso que ele repetia inúmeras vezes como emérito contador de histórias que era. Um dia, ele e um de seus compadres foram passar a noite em um local onde iriam trabalhar. Instalaram-se numa casinha simples de madeira com teto de algum tipo de fibra vegetal, onde é claro não havia luz elétrica. O ambiente só era iluminado por uma tênue lamparina, que eles haviam levado entre as tralhas de trabalho. Após o jantar simples preparado em uma fogueira improvisada regado a uma boa conversa, apagaram a lamparina e foram dormir. Meu avô disse que já estava dormindo há um bom tempo, quando acordou à meia noite, com uma forte luz que vinha de fora, e foi entrando pela choupana, iluminando completamente um pequeno cômodo que dava de frente para o quarto. Então, tremendo de medo, ele se cobriu dos pés à cabeça com o lençol, mas mesmo assim continuou a ver a luz, que estava cada vez mais perto de sua cama. Apavorado com esse fato, começou a rezar e como último recurso disse num tom de voz entrecortado e trêmulo:
___Se o que estiver ai não for coisa desse mundo, se afasta de mim que eu não resisto!
Segundo meu avô, após esta súplica a luz instantaneamente se apagou e a cabana escureceu completamente. No outro dia ele contou a história para os companheiros que haviam dormido tranquilamente à noite inteira e riram dele, dizendo que ele não deveria ter trazido cachaça escondido e que fora muita falta de consideração da parte dele ter bebido tudo sozinho.
Engraçado como funciona a cabeça da gente, porque todas estas lembranças inundaram a minha mente num espaço tão curto de tempo, quando eu apenas havia dado dois ou três tímidos passos em direção ao corredor. Neste intervalo ainda pensei em algumas histórias que meu pai, outro bom contador de causos relatara de visões que tinha tido naquela casa ou de quando ouvira cadeiras na sala ou o sofá sendo arrastado de madrugada.
E eu dizia para mim mesma apavorada:
___Nunca mais! Nunca mais ficarei até tarde vendo TV na sala!
Minha sobrinha também muito assustada agarrada ao meu braço, instintivamente mantinha os passos um pouco atrás dos meus. E aquele corredor nunca pareceu tão comprido!
Ao passar pelo quarto de minha irmã, a porta pareceu bater levemente, como se uma brisa a tivesse empurrado, mas o curioso é que meu subconsciente registrou certo sentimento de medo, que eu não deixei aflorar. Na hora não o percebi creio eu, mas refletindo agora posso dizer que o sentia. Quando finalmente chegamos à porta do quarto despedi-me de Eulália e pulei rápido sob os lençóis ainda trocando de roupa, enquanto podia ouvir os movimentos dela e ver por baixo da porta a luminosidade da lâmpada acesa de seu quarto. Agradeci a Deus por ser mais ágil, e imaginei que a pobre deveria estar mais apavorada do que eu.
Custei algum tempo para pegar no sono. Dormi pouco se bem me lembro, quase nada. Oscilei entre a total consciência dos sentidos e aquele período que antecede ao sono e se está entre acordado e quase dormindo, quando ainda se pode perceber os sons à nossa volta e aos quais, às vezes, incorporamos à algum sonho. Neste prelúdio meus ouvidos atentaram para um barulho incomum àquelas horas da madrugada. Despertei do estado de sonolência e apurei os ouvidos buscando entender o que se passava. O som parecia vir do quarto de minha irmã. A cama dela parecia ranger como se estivesse sendo insistentemente arrastada. Irritada por ter sido tão inconvenientemente trazida do sono, eu balbuciei entre um bocejo e outro: "Caramba, que tanto a Fernanda arrasta este raio de cama?". Pensei em levantar e ir até o quarto dela para verificar o motivo de sua inquietação, mas fui desencorajada pela sonolência e o meu medo do escuro. Entorpecida, virei para o lado e em poucos segundos adormecia novamente.
Não sei precisar quanto tempo se passou. Talvez quinze ou trinta minutos, já que quando dormimos o tempo decorre num ritmo diferente da vigília, mas acordei novamente de súbito, desta vez com a voz da minha irmã chorando e batendo desesperadamente na porta do quarto onde dormiam os meus pais, suplicando por ajuda. Ela gritava em alto e bom som que um espírito a estava perturbando! Firmei os olhos e olhei para o mostrador do despertador antes de deixar o quarto buscando abrigo na companhia dos meus familiares. Era meia-noite!
Todos se levantaram apavorados. Eulália, segurando minha mão, chorava de medo. Suas mãos estavam geladas. Tão frias que eu ainda hoje tenho a sensação do toque gelado quando me lembro desta história. Meu pai parecia muito assustado e zangado tentando acalmar minha irmã para que ela contasse o que havia ocorrido, enquanto minha mãe, sempre solícita nesta hora já trazia um copo com água e açúcar e insistiu para que Juliana a tomasse para “acalmar os nervos”.
Quando ela se acalmou começou a relatar o que havia ocorrido, enquanto nós nos ajeitávamos no sofá, curiosos por ouvir o que ela tinha a dizer. Foi narrando os fatos e às vezes entrecortava a sua fala com um soluço enquanto minha mãe que a havia abraçado afagava a sua cabeça. Dizia que antes de dormir resolvera rezar, e todos se entreolharam com estranheza já que ela não era nada de rezas. Abraçou os joelhos com as mãos e sempre apoiada por minha mãe continuou a contar que enquanto estava rezando sentiu uma mão “misteriosa” pousar sobre a sua. Num impulso pensou em recolher as mãos, mas uma ideia a deteve: Se estava rezando então deveria ser um anjo e por um instante seu coração se encheu de alegria. Foi então que sentiu com surpresa um primeiro beliscão e recolheu a mão instintivamente, porque logo sucederam outros.
Assustada, pulou da cama e foi até a escrivaninha de madeira onde havia duas gavetas e um espelho em formato elíptico. Sobre a escrivaninha encontrava-se um pequeno vaso onde murchavam meia dúzia de rosas que ela apanhara na manhã anterior no jardim em frente a casa. Numa das gavetas pegou um evangelho espírita, que se encontrava perdido entre alguns papéis, com a intenção de fazer uma prece. Enquanto tentava ler o evangelho, a porta do quarto fechou-se com força como quando alguém zangado bate uma porta e embora ela tentasse deixar a porta aberta por três vezes o espírito ruim ou sei lá que outra força atuasse ali naquele momento a impedia, batendo a porta com fúria. Na quarta tentativa, ela escorou a porta com a cômoda, deixando cair o vaso que partiu no gargalo e espalhou as rosas pelo chão. Mas obteve sucesso em deixar a porta aberta.
Já lhe tremia o corpo todo quando corajosamente tentou retomar a leitura do evangelho, mas era interrompida, pois sentia o tempo todo seus cabelos serem remexidos e a luz acendia e apagava como se houvesse ali uma criança invisível ou um espírito zombeteiro lhe pregando peças. Não suportando mais, pulou da cama e correu até o quarto de meus pais batendo desesperadamente na porta e foi quando todos nós acordamos.
Este, sem dúvidas, foi o fato mais estranho que aconteceu com a minha família. Acredito em espíritos, mas não sou uma crédula tola que atribui tudo o que acontece a nossa volta e não podemos explicar a obras de espíritos. Quanto ao fenômeno ocorrido com minha irmã eu posso dar fé como testemunha, pois presenciei uma parte da situação narrada por ela, então posso afirmar, a menos que a nossa família tenha sofrido de um caso de alucinação coletiva ou algo assim, que o que ela disse era bem real.
Segundo minha mãe que é espírita, a qual eu considero muito sábia pela sua vivência e observação das coisas, naquela época, minha irmã estava mal acompanhada espiritualmente, pois passava por uma fase de rebeldia, demonstrando ingratidão para conosco que a amávamos e era muito briguenta e turrona. Esta experiência fez com que ela refletisse um pouco sobre suas atitudes e se tornasse uma pessoa melhor, voltando novamente a respeitar os valores familiares.
Naquela mesma noite e a partir de então, minha irmã ficou por um longo tempo dormindo no meu quarto e estendia o colchão ao lado de minha cama. Ela, que tanto brigava comigo! E por um bom tempo dormi imersa até o último pelo da cabeça sob os lençóis.
Inspirado nos relatos da amiga e professora Silvia Canônico da cidade de Araraquara
Agnaldo Garcia