segunda-feira, 12 de abril de 2010

Para Sebastião Rodrigues

“Antes todos os caminhos iam

Agora todos os caminhos vêm

A casa é acolhedora, os livros poucos

E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas”

Envelhecer – Mario Quintana

Foi num dia comum sem nenhum agouro ou aviso que a estrela de Sebastião se apagou. Não se pode dizer exatamente que morreu. Porque morrer geralmente implica em algo trágico e rápido ou numa lenta agonia, uma doença incurável, desengano da medicina, um bater de botas, ir antes da hora, ou qualquer coisa assim que as pessoas dizem na hora da morte para preencher o espaço vazio de perplexidade de saber que o outro simplesmente, inaceitavelmente, um dia deixou de existir. Acho que aceitar este fato é bem pior que aceitar a morte física, o apodrecer do corpo. Eu penso que todas as religiões no mundo existem por causa da incapacidade do homem de aceitar o fim da consciência.

Mas, sem querer abusar de eufemismos, meu avô Sebastião foi parando aos poucos, lenta e inevitavelmente caminhando para um nível zero de energia de modo que a sua partida já era algo mais ou menos anunciado pelas pessoas que o acercavam. Apenas há poucos anos atrás ele era um ancião já de corpo alquebrado e movimentos limitados, mas de mente aguda e uma memória de longo alcance típica das pessoas desta idade, dotada de grande e invejável capacidade de relembrar em detalhes os fatos passados que ele sempre rememorava quando eu ou outra pessoa mais íntima ia visitá-lo. E eu ouvia com paciência, embora já conhecesse de cor e salteado, os “causos” que ele contava saudoso da época em que era colono das fazendas de café daqui do interior paulista. Seus jogos de futebol, contos de assombração que ele ou um compadre presenciara, as aventuras e peripécias nas roças de café, excetuando alguns trechos confusos de memória que ficaram comigo e outros parentes, perderam-se para sempre quando a mente única de Sebastião deixou de existir. Mas dele também ficou outra coisa importante, que talvez eu aqui refletindo ouso dizer que seja a maior herança que se deixa quando findamos nossa existência deste planeta: um testemunho digno de vida. Sebastião não foi ninguém importante, ao menos na concepção gauche que damos à importância. Nenhuma rua, nem avenida ou praça terá seu nome e acredito que quando os seus entes mais próximos se forem sua passagem aqui na Terra não terá deixado nenhum vestígio. Quando vim ter a este mundo, Sebastião já era idoso e assim é que guardo em minha mente a imagem do meu avô velhinho, um legítimo descendente de uma mistura do escravo negro africano com o branco europeu. Confesso que nunca conheci pessoa tão justa e sensata quanto ele porque em todos estes anos de convivência nunca o vi se exaltar sem justo motivo ou não contra qualquer pessoa. Também nunca o ouvi dizer eu te amo a ninguém, mas sabia que ele me amava, assim como amava suas filhas e filho, seus outros netos e demais entes queridos porque ele fazia de gestos palavras como todas as pessoas simples da sua geração. Quando eu mais precisei de abrigo num momento difícil do meu final de adolescência, Sebastião meu avô me estendeu a mão e nunca me fez sentir que estivesse em débito algum com ele por causa disso.

Era triste ver Sebastião nos últimos anos, aquela mente que antes era cheia de vivacidade e possuía uma maneira positiva de encarar a vida, aos poucos perdendo a lucidez. Nos últimos anos, excetuando raros momentos de sobriedade, Sebastião já não contava os seus causos e anedotas, somente se limitava a responder laconicamente, quase resmungando, quando era questionado sobre algum fato.

Sebastião Rodrigues nasceu em 1920 no Rio de Janeiro, segundo ele mesmo contava. Desde pequeno trabalhava como colono nas fazendas de café. Quando era bem jovem ainda perdeu o seu querido e saudoso irmão mais velho vítima de pneumonia, a AIDS do início do século vinte. Aprendeu a ler e escrever e fazer contas tomando algumas aulas particulares e através da ajuda de amigos. Casou-se, como era costume da época entre as pessoas pobres, fugindo com Maria Garcia, minha avó materna, que morreu cerca de 10 anos antes dele, vítima de enfisema pulmonar por causa do tabaco. Trabalhou nas lavouras de cana-de-açucar da região central do estado de São Paulo, depois que os cafezais cederam lugar às plantações desta cultura. Era admirador entusiasta de Getúlio Vargas e teimoso nas suas convicções. Teve cinco filhas e um filho, muitos netos e bisnetos que choraram tristes no dia que seu corpo foi sepultado. Um lindo e triste sábado de chuva.

Agnaldo Garcia

3 comentários:

  1. Uma bela e digna homenagem ao homem que formou pessoas honestas e de bem. Sim, afirmou com toda a certeza, ele ainda dará nome a algum passeio público, pois merece uma honraria a esse porte como trabalhador que teimou a deixar o ofício na roça mesmo com todos os problemas de saúde que resultaram em sua morte no triste dia 27 de junho de 2009.
    Meu primo, parabéns pela bela síntese do seus sentimentos e da vida do nosso avô, ele deve estar se orgulhando muitíssimo do legado que deixou aos seus familiares aqui na Terra.
    Permita-me, em homenagem, publicar esse texto na data em que celebramos o primeiro ano de morte do "Tio Baiano", como os sobrinhos costumavam o chamar.

    Forte abraço e, mais uma vez, parabéns.

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  2. Ta permitido primo...Ele merece...Abração.

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  3. Um ano de tristeza, de saudades... e outros mais virão, infelizmente. Todas as homenagens serão poucas, tendo em vista o grande exemplo que ele nos deixou. Sua sabedoria, adquirida através da faculdade da vida, vale muito mais que um diploma, sendo o suficiente para formar cidadãos humanos, honestos e de bem. Fique com Deus vô!

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