domingo, 25 de abril de 2010

Poema de Aniversário

Porque fizeste anos, Bem-Amada, e a asa do tempo roçou teus cabelos negros, e teus grandes olhos calmos miraram por um momento o inescrutável Norte…

Eu quisera dar-te, ademais dos beijos e das rosas, tudo o que nunca foi dado por um homem à sua Amada, eu que tão pouco te posso ofertar. Quisera dar-te, por exemplo, o instante em que nasci, marcado pela fatalidade de tua vinda. Verias, então, em mim, na transparência do meu peito, a sombra de tua forma anterior a ti mesma.

Quisera dar-te também o mar onde nadei menino, o tranqüilo mar de ilha em que me perdia e em que mergulhava, e de onde trazia a forma elementar de tudo o que existe no espaço acima — estrelas mortas, meteoritos submersos, o plancto das galáxias, a placenta do Infinito.

E mais, quisera dar-te as minhas loucas carreiras à toa, por certo em premonitória busca de teus braços, e a vontade de grimpar tudo de alto, e transpor tudo de proibido, e os elásticos saltos dançarinos para alcançar folhas, aves, estrelas — e a ti mesma, luminosa, a derramar claridade em mim menino.

Ah, pudesse eu dar-te o meu primeiro medo e a minha primeira coragem; o meu primeiro medo à treva e a minha primeira coragem de enfrentá-la, e o primeiro arrepio sentido ao ser tocado de leve pela mão invisível da Morte.

E o que não daria eu para ofertar-te o instante em que, jazente e sozinho no mundo, enquanto soava em prece o cantochão da noite, vi tua forma emergir do meu flanco, e se esforçar, imensa ondina arquejante para se desprender de mim; e eu te pari gritando, em meio a temporais desencadeados, roto e imundo do pó da terra.

Gostaria de dar-te, Namorada, aquela madrugada em que, pela primeira vez, as brancas moléculas do papel diante de mim dilataram-se ante o mistério da poesia subitamente incorporada; e dá-la com tudo o que nela havia de silencioso e inefável — o pasmo das estrelas, o mudo assombro das casas, o murmúrio místico das árvores a se tocarem sob a Lua.

E também o instante anterior à tua vinda, quando, esperando-te chegar, relembrei-te ainda adolescente naquela mesma cidade em que te reencontrava anos depois; e a certeza que tive, ao te olhar, da fatalidade insigne do nosso encontro, e de que eu estava, de um só golpe, perdido e salvo.

Quisera dar-te, sobretudo, Amada minha, o instante da minha morte; e que ele fosse também o instante da tua morte, de modo que nós, por tanto tempo em vida separados, vivêssemos em nosso descenso uma só eternidade; e que nossos corpos fossem embalsamados c sepultados juntos e acima da terra; e que todos aqueles que ainda se vão amar pudessem ir mirar-nos em nosso último leito; e que sobre nossa lápide comum jazesse a estátua de um homem parindo uma mulher do seu flanco; e que nela houvesse apenas, como epitáfio, estes versos finais de uma canção que te dediquei:


... dorme, que assim
dormirás um dia
na minha poesia
de um sono sem fim...

Vinicius de Moraes

sexta-feira, 23 de abril de 2010

Permita-me (Aos Noivos)

Suave e indispensável como o vento

Que eu seja sempre assim

Permita que eu seja sempre

Que eu num assopro leve embora a tua angústia

E que o teu fardo pese em parte nos meus ombros

Permita que o meu abraço e o meu afago

Afaste o medo na escuridão da noite

Que a minha lâmpada ilumine o teu caminho

Que eu seja a bússola que indica a tua direção

Permita-me contar os teus cabelos brancos com os anos

Que eu seja o bálsamo na tua enfermidade

Que eu contemple teus sorrisos de alegria

E enxugue com minhas mãos as tuas lágrimas de tristeza

Até e além do fim de nossos dias...

Aos noivos Felipe e Ariane – 03/04/2010

Agnaldo Garcia

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Vento Solidão

Que bom que seja assim de vez em quando

Só eu e o vento soprando da janela

Quando a cortina na alma se levanta

E tudo fica nítido, água cristalina

Bendigo a quietude que me acerca nestas horas

Pois sem a solidão necessária, o espírito desencontra...

Mesmo nestes instantes teu silêncio grita

E então é só o que eu consigo ouvir

A saudade purifica de bem querer a alma

A reflexão redime, mostra o caminho

E o menino que brinca na luz de dentro

Conduz o homem que tateia a escuridão de fora

Assim posso conceber que durante esta jornada curta

Fui apenas lusco-fusco, crepitar de uma fagulha

E se brilhei assim, breve mas intenso

Foi para iluminar o meu caminho até você

Agnaldo Garcia

sábado, 17 de abril de 2010

Soneto de Aniversário

Passem-se dias, horas, meses, anos
Amadureçam as ilusões da vida
Prossiga ela sempre dividida
Entre compensações e desenganos.

Faça-se a carne mais envilecida
Diminuam os bens, cresçam os danos
Vença o ideal de andar caminhos planos
Melhor que levar tudo de vencida.

Queira-se antes ventura que aventura
À medida que a têmpora embranquece
E fica tenra a fibra que era dura.

E eu te direi: amiga minha, esquece…
Que grande é este amor meu de criatura
Que vê envelhecer e não envelhece.

Vinicius de Moraes

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Para Sebastião Rodrigues

“Antes todos os caminhos iam

Agora todos os caminhos vêm

A casa é acolhedora, os livros poucos

E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas”

Envelhecer – Mario Quintana

Foi num dia comum sem nenhum agouro ou aviso que a estrela de Sebastião se apagou. Não se pode dizer exatamente que morreu. Porque morrer geralmente implica em algo trágico e rápido ou numa lenta agonia, uma doença incurável, desengano da medicina, um bater de botas, ir antes da hora, ou qualquer coisa assim que as pessoas dizem na hora da morte para preencher o espaço vazio de perplexidade de saber que o outro simplesmente, inaceitavelmente, um dia deixou de existir. Acho que aceitar este fato é bem pior que aceitar a morte física, o apodrecer do corpo. Eu penso que todas as religiões no mundo existem por causa da incapacidade do homem de aceitar o fim da consciência.

Mas, sem querer abusar de eufemismos, meu avô Sebastião foi parando aos poucos, lenta e inevitavelmente caminhando para um nível zero de energia de modo que a sua partida já era algo mais ou menos anunciado pelas pessoas que o acercavam. Apenas há poucos anos atrás ele era um ancião já de corpo alquebrado e movimentos limitados, mas de mente aguda e uma memória de longo alcance típica das pessoas desta idade, dotada de grande e invejável capacidade de relembrar em detalhes os fatos passados que ele sempre rememorava quando eu ou outra pessoa mais íntima ia visitá-lo. E eu ouvia com paciência, embora já conhecesse de cor e salteado, os “causos” que ele contava saudoso da época em que era colono das fazendas de café daqui do interior paulista. Seus jogos de futebol, contos de assombração que ele ou um compadre presenciara, as aventuras e peripécias nas roças de café, excetuando alguns trechos confusos de memória que ficaram comigo e outros parentes, perderam-se para sempre quando a mente única de Sebastião deixou de existir. Mas dele também ficou outra coisa importante, que talvez eu aqui refletindo ouso dizer que seja a maior herança que se deixa quando findamos nossa existência deste planeta: um testemunho digno de vida. Sebastião não foi ninguém importante, ao menos na concepção gauche que damos à importância. Nenhuma rua, nem avenida ou praça terá seu nome e acredito que quando os seus entes mais próximos se forem sua passagem aqui na Terra não terá deixado nenhum vestígio. Quando vim ter a este mundo, Sebastião já era idoso e assim é que guardo em minha mente a imagem do meu avô velhinho, um legítimo descendente de uma mistura do escravo negro africano com o branco europeu. Confesso que nunca conheci pessoa tão justa e sensata quanto ele porque em todos estes anos de convivência nunca o vi se exaltar sem justo motivo ou não contra qualquer pessoa. Também nunca o ouvi dizer eu te amo a ninguém, mas sabia que ele me amava, assim como amava suas filhas e filho, seus outros netos e demais entes queridos porque ele fazia de gestos palavras como todas as pessoas simples da sua geração. Quando eu mais precisei de abrigo num momento difícil do meu final de adolescência, Sebastião meu avô me estendeu a mão e nunca me fez sentir que estivesse em débito algum com ele por causa disso.

Era triste ver Sebastião nos últimos anos, aquela mente que antes era cheia de vivacidade e possuía uma maneira positiva de encarar a vida, aos poucos perdendo a lucidez. Nos últimos anos, excetuando raros momentos de sobriedade, Sebastião já não contava os seus causos e anedotas, somente se limitava a responder laconicamente, quase resmungando, quando era questionado sobre algum fato.

Sebastião Rodrigues nasceu em 1920 no Rio de Janeiro, segundo ele mesmo contava. Desde pequeno trabalhava como colono nas fazendas de café. Quando era bem jovem ainda perdeu o seu querido e saudoso irmão mais velho vítima de pneumonia, a AIDS do início do século vinte. Aprendeu a ler e escrever e fazer contas tomando algumas aulas particulares e através da ajuda de amigos. Casou-se, como era costume da época entre as pessoas pobres, fugindo com Maria Garcia, minha avó materna, que morreu cerca de 10 anos antes dele, vítima de enfisema pulmonar por causa do tabaco. Trabalhou nas lavouras de cana-de-açucar da região central do estado de São Paulo, depois que os cafezais cederam lugar às plantações desta cultura. Era admirador entusiasta de Getúlio Vargas e teimoso nas suas convicções. Teve cinco filhas e um filho, muitos netos e bisnetos que choraram tristes no dia que seu corpo foi sepultado. Um lindo e triste sábado de chuva.

Agnaldo Garcia

sábado, 10 de abril de 2010

Extremos da Paixão

Não, meu bem, não adianta bancar o distante

lá vem o amor nos dilacerar de novo...

Andei pensando coisas. O que é raro, dirão os irônicos. Ou "o que foi?" - perguntariam os complacentes. Para estes últimos, quem sabe, escrevo. E repito: andei pensando coisas sobre amor, essa palavra sagrada. O que mais me deteve, do que pensei, era assim: a perda do amor é igual à perda da morte. Só que dói mais. Quando morre alguém que você ama, você se dói inteiro(a)- mas a morte é inevitável, portanto normal. Quando você perde alguém que você ama, e esse amor - essa pessoa - continua vivo(a), há então uma morte anormal. O NUNCA MAIS de não ter quem se ama torna-se tão irremediável quanto não ter NUNCA MAIS quem morreu. E dói mais fundo- porque se poderia ter, já que está vivo(a). Mas não se tem, nem se terá, quando o fim do amor é: NEVER.

Pensando nisso, pensei um pouco depois em Boy George: meu-amor-me-abandonou-e-sem-ele-eu-nao-vivo-então-quero-morrer-drogado. Lembrei de John Hincley Jr., apaixonado por Jodie Foster, e que escreveu a ela, em 1981: "Se você não me amar, eu matarei o presidente". E deu um tiro em Ronald Regan. A frase de Hincley é a mais significativa frase de amor do século XX. A atitude de Boy George - se não houver algo de publicitário nisso - é a mais linda atitude de amor do século XX. Penso em Werther, de Goethe. E acho lindo.

No século XX não se ama. Ninguém quer ninguém. Amar é out, é babaca, é careta. Embora persistam essas estranhas fronteiras entre paixão e loucura, entre paixão e suicídio. Não compreendo como querer o outro possa tornar-se mais forte do que querer a si próprio. Não compreendo como querer o outro possa pintar como saída de nossa solidão fatal. Mentira:compreendo sim. Mesmo consciente de que nasci sozinho do útero de minha mãe,berrando de pavor para o mundo insano,e que embarcarei sozinho num caixão rumo a sei lá o quê, além do pó.O que ou quem cruzo entre esses dois portos gelados da solidão é mera viagem: véu de maya,ilusão,passatempo.E exigimos o terno do perecível,loucos.

Depois, pensei também em Adèle Hugo, filha de Victor Hugo. A Adèle H. de François Truffaut, vivida por Isabelle Adjani. Adèle apaixonou-se por um homem. Ele não a queria. Ela o seguiu aos Estados Unidos, ao Caribe, escrevendo cartas jamais respondidas, rastejando por amor. Enlouqueceu mendigando a atenção dele. Certo dia, em Barbados, esbarraram na rua. Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolosem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente. Existia somente dentro dela. Adèle morreu no hospício, escrevendo cartas (a ele: "É para você, para você que eu escrevo" - dizia Ana C.) numa língua que, até hoje, ninguém conseguiu decifrar.

Andei pensando em Adèle H., em Boy George e em John Hincley Jr. Andei pensando nesses extremos da paixão, quando te amo tanto e tão além do meu ego que - se você não me ama: eu enlouqueço, eu me suicido com heroína ou eu mato o presidente. Me veio um fundo desprezo pela minha/nossa dor mediana, pela minha/nossa rejeição amorosa desempenhando papéis tipo sou-forte-seguro-essa-sou-mais-eu. Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida.

Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor car(o,a,) colega esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.

Caio Fernando Abreu