domingo, 6 de junho de 2010

A Alma da Menininha

Lívia já se acostumara a ver espíritos. Para ela a conexão com o mundo espiritual se dava em banda larga. Quando começou a perceber que tinha este “dom” e aprendeu a observar os sinais que anunciavam quando um fenômeno destes ia acontecer, ela ficava apavorada. Tinha medo de lugares escuros quando estava sozinha e quando sentia aquele familiar arrepio na nuca, fugia do local onde se encontrava e buscava abrigo junto às pessoas ou em ambientes bem iluminados. Imaginava que estas visões e coisas que ouvia, esta conectividade com o mundo espiritual, se dava em decorrência de sua frágil saúde desde a infância. Como passou toda a vida com um pé em cada um dos dois mundos, nada mais natural que as duas dimensões se mostrassem a ela, conjecturava.

Quase sempre quando passava por uma destas experiências, guardava para si, receosa de que as pessoas pudessem julgá-la fora de juízo.

As coisas tomaram maior proporção na vida adulta, numa época em que ela cuidou de uma mulher conhecida sua que sofria de um terrível câncer que a consumiu por dentro. Lívia, bondosa que era, cuidou da pobre enferma até aproximadamente um mês antes de seu doloroso falecimento, sendo depois substituída por uma enfermeira em função da necessidade da doente de drogas pesadas para aliviar as terríveis dores das quais passou a sofrer com o avanço da enfermidade. O fato é que Lívia também estava exausta com os cuidados que dispensara à paciente e devido a sua saúde frágil já não conseguia cuidar da pobre enferma. Também ficou emocionalmente muito abalada já que era pessoa de sua convivência e a doença fez com que as duas se afeiçoassem mais.

Enfim a mulher veio a óbito. Na noite após o sepultamento, Lívia, apesar de exausta, não conseguia pegar no sono. Deitada ao lado do marido, que dormia profundamente, ela sentiu sede e levantou-se para beber água. Na volta para cama, ao passar pela sala, viu estarrecida, a falecida que a observava pelo vidro da janela. Em pânico ante a visão aterradora de um cadáver, ela corre para a cama e chama por diversas vezes o marido que, em sono profundo, não desperta. Lívia se joga embaixo das cobertas, cobrindo-se até a cabeça. Mas a defunta a persegue até o leito e, com as mãos estendidas, implora por ajuda.

A partir deste episódio apavorante, as visões tornaram-se mais nítidas e freqüentes, principalmente quando a passagem para o outro lado era de alguém muito próximo, como uma pessoa da família. De uns anos para cá, a morte de alguém próximo a ela era prenunciada pela aparição de uma garotinha loira de cabelos cacheados e muito bonita, aparentando uns quatro ou cinco anos, trajando um vestido vermelho longo até a canela e carregando uma flor belíssima, semelhante a uma rosa, em sua mão. Foi assim quando faleceu a filha de um tio querido de seu marido e também quando faleceu seu sogro há quem ela muito estimava.

Os anos se passaram e a saúde de Lívia ia gradualmente se deteriorando. Já há algum tempo, porém as visões tornaram-se menos freqüentes e já não via a garotinha há algum tempo já que neste intervalo não tivera a infelicidade de perder alguém próximo. Num dia de faxina Lívia estava lavando a garagem de casa quando percebeu que próximo a ela apreciam passos de criança no chão molhado. Ficou curiosa ante aquele fenômeno porque realmente não havia nem uma criança no local, mas logo entendeu o que estava ocorrendo, pois sentiu uma presença que a muito não sentia. De súbito, veio-lhe uma pontada lancinante no peito e sua visão turvou-se como se alguém houvesse apagado a luz do mundo. Chamou por socorro e foi acudida pela vizinha que varria o quintal e por cima do muro viu que Lívia havia sentado na garagem com a mão ao peito.

Nisto, Lívia sentiu que a dor foi desaparecendo e sua visão voltou ao normal. Na verdade não se lembrava de sentir-se tão bem o quanto se sentia naquele momento. Com sua visão agora misteriosamente apurada percebeu de relance que havia alguém ao seu lado. Quando se virou, reconheceu a imagem da garotinha que já há algum tempo não via. Ela só lhe sorriu e estendeu a mão. Lígia levantou-se apoiada sentindo-se leve naquele momento. A sua frente havia uma luz brilhante como ela nunca havia visto antes e sentiu que a garotinha a puxava de encontro àquele brilho intenso que a atraia também tamanha a paz que ela sentia quando o mirava.

Olhou para trás e teve ímpeto de voltar quando se lembrou de seu esposo e filhos que percebia estar deixando, mas sabia que era preciso continuar em direção à luz, aquela luz tão bela que a conduzia por uma espécie de túnel cujas paredes pareciam cimentadas de éter apenas. Voltou-se para a garotinha ao lado que serena a olhava com compaixão e familiaridade como se a conhecesse já de muito tempo. Num instante, se achou no fim do túnel onde viajava e saindo para um lindo jardim com flores parecidas com rosas, como aquelas que a garotinha trazia consigo quando a visitava. Olhou para o seu corpo e não reconheceu mais a mulher de quarenta e tantos anos, mas ele estava transfigurado agora também numa garotinha como a que lhe dava as mãos.

A menina apanhou uma flor do jardim e lhe deu. Caminharam para junto de algumas pessoas que pareciam aguardar por Lívia. Reconheceu seus entes queridos que já haviam partido e abraçou cada um deles longamente, cheia de saudades...

Agnaldo Garcia

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