sábado, 19 de junho de 2010

Psicopata - O Anjo Vingador

“Quem luta com monstros deve velar, para quando ao fazê-lo,

não se transforme também. Porque quando olhamos,

durante muito tempo, para um abismo,

o abismo também olha para dentro de nós.”

Friedrich Nietzsche

Na primeira vez que ela passou por mim eu a olhei bem nos olhos e ela sorriu como se eu fosse alguém familiar. Eu sorri de volta e de maneira convincente - eu imagino - já que me tornei muito eficaz na arte de encenar simpatia e alguns outros sentimentos que, embora eu saiba existirem, jamais experimentei. Há um tempo eu a venho preparando para mim. Utilizando todo o meu repertório de truques e artimanhas para conquistar a sua simpatia. Outro dia esbarrei nela sem querer e deixei cair um punhado de materiais que trazia comigo, e ela num gesto altruísta, como eu esperava, ajudou-me a recolher a papelada espalhada pelo chão. Puxando conversa, disse-lhe após algum tempo, que estava sentido com o fim recente de um relacionamento. Percebi que isto a interessou e ela esticou o assunto fazendo com que eu me abrisse e desabafasse. Assim, fui ganhando a sua confiança e nós nos tornamos íntimos de maneira que ela me confidenciou alguns pequenos segredos sobre a sua vida. Disse-me que até pouco tempo mantivera um relacionamento com um homem de sua relação de trabalho, com o qual rompera. Só omitiu o adultério de ambos, a vagabunda. Obviamente ela nem desconfia que o motivo de ter me conhecido seja estas aventuras e que em breve nós iremos estreitar este nosso curto relacionamento de uma maneira irreparável e profunda. Ela vai marcar a minha existência. Vai dar sentido a ela por um tempo ao menos, enquanto eu definitivamente darei destino à sua por causa dos atos pecaminosos que praticou. Ela é uma ninfomaníaca que está sempre enganando o companheiro com quem divide uma vida e envolvendo-se com homens de todos os tipos. Em suma, ela é pouco seletiva na escolha de seus parceiros de luxúria, ao contrário de mim que só escolho os tipos como ela para outro fim bem específico.

Eu ando entre as gentes, os humanos, falo como eles e me pareço com eles, mas não sou homo sapiens. Meu DNA foi divinamente modificado. Por isso ninguém pode ter acesso a uma amostra do meu sangue. Eu sou um anjo vingador de Deus, concebido para trazer à terra a conseqüência àqueles que atentam contra as suas leis e mandamentos. Sua espada de fogo está em minhas mãos e a mim foi dada a autoridade para trazer a justiça contra as mulheres devassas que profanando o templo sagrado do espírito santo que é o seu corpo, destroem lares através da sua concupiscência e devassidão. Ela não será a primeira a sofrer, através deste mensageiro, a ira do Divino e provavelmente não será a última. Mas a minha missão aqui na terra está terminando e eu, lavado com meu próprio sangue, partirei para a glória junto àquele de quem sou servo leal. A polícia daqui não é das mais brilhantes, mas em breve eu deixarei pistas indubitáveis e estarei pronto e esperando o primeiro e derradeiro confronto.

Por agora me concentro na minha missão atual. Minha percepção aguçada de sobre-humano a detectou com facilidade. Desenvolvi com o tempo habilidades notáveis que me capacitam e me tornam perfeito para a realização desta missão. Eu as identifico e faço uma varredura completa em suas vidas, hábitos, preferências e assim assumo o papel do homem que é capaz de atraí-las facilmente colocando-as na palma de minha mão de maneira que tenho a confiança plena delas. Elas se sentem totalmente seguras comigo e eu posso conduzi-las onde e quando eu bem quiser. Em seguida eu as levo para um local isolado e seguro para mim. Lá eu as coloco inconscientes através de um lenço com clorofórmio no nariz e as imobilizo com fita adesiva larga e realizo o ritual de purificação de suas almas, conforme instruções expressas do anjo Gabriel. Depois, eu as imolo e as abandono num local ermo de maneira que seus corpos apodrecidos sejam encontrados após alguns dias. Junto aos corpos, deixo escrito com o sangue da vítima uma tabuleta de madeira com um versículo da bíblia, que demonstra claramente o motivo pelo qual a pecadora que ali apodrece foi imolada.

Esta é minha “assinatura”, como dizem os especialistas. Aliás, eles adoram rótulos. Rio quando leio nos jornais as tentativas de traço de perfil que são feitas com relação a minha pessoa. Dizem que provavelmente eu sou um fanático religioso e que minhas vítimas, todas mulheres, tem o perfil psicológico parecido com o de minha mãe provavelmente. Pobres diabos ignorantes e imbecis. Minha mãe era uma santa criatura que nunca teve um comportamento devasso e sempre respeitou meu pai. Ela me orientou para o caminho de Deus, me fazendo desde criança ler diariamente a bíblia para conhecer e guardar os mandamentos do Senhor. A pobre teve uma vida terrível e nós, eu e meus dois irmãos também padecemos as agruras de um pai ébrio e drogado que mantinha sempre uma amante e descontava costumeiramente em nós as suas frustrações através de agressões físicas e verbais. Tenho guardado aqui em casa algumas radiografias de fraturas que eu colecionei nestes anos em que meu miserável pai esteve neste planeta. Sou grato a Deus por tê-lo levado com um infarto fulminante e ter permitido a minha pobre mãezinha um descanso nos últimos anos em que esteve comigo aqui na terra. Ele humilhava minha mãe, exibindo pelos bares e botecos da vizinhança as raparigas às quais tratava bem em contraste ao tratamento que dispensava à sua própria família. Foi por essa época que o anjo Gabriel me visitou pela primeira vez e foi gradualmente me instruindo da missão que eu deveria desempenhar aqui na terra a serviço das ordens celestiais. Assim, por ser especial, fui recrutado e treinado como soldado dos céus.

A despeito de todas as dificuldades econômicas pelas quais passei durante minha infância sempre obtive grande êxito nos estudos e com o tempo adquiri certa estabilidade econômica que me permitiu possuir os instrumentos necessários para o cumprimento da minha missão. Comprei uma propriedade rural e construí nela, com minhas próprias mãos e como anexo secreto da casa, um cômodo subterrâneo e acusticamente isolado. É aqui onde novamente trarei a profanadora que observo sorrateiro agora. Depois eu a deixarei apodrecer num terreno baldio localizado a poucas centenas de metros da casa, com mais uma passagem bíblica junto ao corpo. Novamente uma tabuleta trará gravada, junto ao corpo com o sangue dela, a seguinte inscrição: “Tiago 1:15”.

Quando consultarem a passagem na bíblia sagrada lerão o seguinte texto: “Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte”...

Agnaldo Garcia

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Underground


Tenho trabalhado tanto que nem sinto a falta de espaço que sobra nesta pequena quitinete. Só o que sinto é a sua falta. Penso em você nestes dias mesmo quando estou tão cansado que mal ligo a televisão e já desmaio de sono e quando acordo às duas da madrugada ou algo assim, percebo que esqueci até de trocar a roupa com a qual trabalhei o dia todo ontem. Desligo imediatamente o aparelho, imaginando que do outro lado desta parede fina entre apartamentos alguém pode estar incomodado com o som que vaza, já que do meu lado eu às vezes também posso escutar o ruído do meu vizinho que, apesar do tempo em que vivemos próximos eu mal conheço e só devo ter visto umas duas ou três vezes e trocado nada mais do que uma ou duas sílabas apressadas. Imagino se ele ou ela tem alguém que espera o retorno do trabalho e compartilha as pequenas alegrias e misérias cotidianas desta vida ou se, como eu, vive só...

...Tomo apressadamente um banho e depois sorvo o meu café nesta pressa solitária de todos os dias em que milhões de seres humanos espremidos na metrópole paulista vivem. E quando engulo o pão com queijo e margarina em goles de leite com achocolatado estou pensando em você.

Visto o meu uniforme de terno e gravata, pego a minha pasta verificando apressado se não esqueci nenhum documento que irei utilizar hoje. Dou uma última olhada no espelho, ajeito o cabelo com o pente e fecho a porta deste meu apertamento caminhando para o elevador.

Neste momento gosto de fantasiar que se você estivesse aqui comigo, viria até a porta me dar um beijo trazendo o saco de papel com o lanche do almoço que eu, descuidado, esqueceria sobre a pia da cozinha. Depois você me desejaria um bom dia, que eu voltasse logo e nos despediríamos com um beijo suave. E eu sairia feliz.

Aperto o botão do elevador. Do sétimo andar até o térreo foco a cinzenta paisagem da cidade e fico imaginando, só para preencher o tempo, o que você estará fazendo, talvez atarefada nos seus deveres. Se ainda dorme ou, se acordada sonha como eu agora. Atravesso para a rua pelo bonito e frio térreo do prédio enfeitado de estátuas greco-romanas e plantas ornamentais onde, desprentesiosamente, repousam duas poltronas confortáveis em torno de uma televisão onde provavelmente ninguém se senta.

Caminho alguns quarteirões e entro na Paulista em direção à escada do metrô ao encontro de passos atribulados e, pensando em você, nem vejo quando automaticamente desço a escada rolante e me posiciono ao lado da linha junto com mais dez ou doze rostos nos quais busco aqui e ali algum que pareça o seu e só dou conta de onde estou de novo quando o ar frio e encanado do túnel do trem sopra sobre o meu rosto, empurrado pelos vagões que rapidamente se aproximam para vomitar e engolir gente num frêmito de metrópole que tem pressa sempre.

A porta se abre, pessoas saem ligeiramente dos vagões. Vasculho neste instante cada rosto e imagino o seu agora aqui me olhando indiferente como estes. E fico assim curtindo esta dor “que dá bem lá na pontinha do coração”, como você mesmo costuma dizer ou qualquer coisa assim, enquanto em meu ouvido o fone toca “I Dont Wanna Miss a Thing” do Aerosmith e eu me lembro que na outra noite não dormi direito de tanto pensar em você. E sigo sonhando no embalo da música, imaginando você deitada ao meu lado e eu, como na canção, passando a noite em claro apenas observando enquanto você ressona pesadamente e o seu cabelo comprido encobre a sua face. Então, delicadamente para que você não acorde e rompa este momento de magia, afasto os fios do seu rosto para poder observar um sorriso que você deixa escapar pelo canto da boca.

“... I could spend my life in this sweet surrender...” a música continua tocando e eu, perdido em pensamentos, volto à realidade quando o corpo por inércia pende ante a desaceleração do trem que para. Neste devaneio, desço automaticamente na estação Paraíso e tomo a linha Azul.

Atravesso a estação São Joaquim quando me pego falando sozinho. Mas ninguém nota ou se quer se importa quando balbucio o seu nome entre os dentes num sussurro de quem enlouquece frente à solidão desta imensa selva de concreto e ferro sob a qual estou sepultado agora a dezenas de metros de profundidade. Ainda pensando em você acesso a linha vermelha. Na Praça da República desço do metrô e, com pressa, subo degrau por degrau da escada rolante.

Chego ao trabalho e sento na frente do meu PC, começando com um copo de café quente o meu dia de trabalho e mergulho fundo nas atividades dele, porque assim eu sei que durante o dia inteiro eu quase não vou pensar em você, mesmo quando abrir a caixa de mensagens do meu email e, resignado, constatar que mais uma vez não recebi nem ao menos uma mensagem sua.

O dia vai passar ligeiro e transformar-se em semanas e meses. E na minha rotina vou estar em casa depois do trabalho, sempre diante da minha TV assistindo mecanicamente algum programa em alta definição, perdendo a linha de raciocínio e não entendendo aquele filme de suspense, porque eu estarei pensando em você. E a noite vai me alcançar depressa, como tudo que acontece aqui nesta cidade, trazendo junto com ela o entorpecimento do sono.

Aos sábados e domingos eu poderei acordar mais tarde. E enclausurado na minha solidão metropolitana... Vou passar cada o dia me ocupando de coisas triviais...Só para não pensar o tempo todo em você...



Agnaldo Garcia

domingo, 6 de junho de 2010

A Alma da Menininha

Lívia já se acostumara a ver espíritos. Para ela a conexão com o mundo espiritual se dava em banda larga. Quando começou a perceber que tinha este “dom” e aprendeu a observar os sinais que anunciavam quando um fenômeno destes ia acontecer, ela ficava apavorada. Tinha medo de lugares escuros quando estava sozinha e quando sentia aquele familiar arrepio na nuca, fugia do local onde se encontrava e buscava abrigo junto às pessoas ou em ambientes bem iluminados. Imaginava que estas visões e coisas que ouvia, esta conectividade com o mundo espiritual, se dava em decorrência de sua frágil saúde desde a infância. Como passou toda a vida com um pé em cada um dos dois mundos, nada mais natural que as duas dimensões se mostrassem a ela, conjecturava.

Quase sempre quando passava por uma destas experiências, guardava para si, receosa de que as pessoas pudessem julgá-la fora de juízo.

As coisas tomaram maior proporção na vida adulta, numa época em que ela cuidou de uma mulher conhecida sua que sofria de um terrível câncer que a consumiu por dentro. Lívia, bondosa que era, cuidou da pobre enferma até aproximadamente um mês antes de seu doloroso falecimento, sendo depois substituída por uma enfermeira em função da necessidade da doente de drogas pesadas para aliviar as terríveis dores das quais passou a sofrer com o avanço da enfermidade. O fato é que Lívia também estava exausta com os cuidados que dispensara à paciente e devido a sua saúde frágil já não conseguia cuidar da pobre enferma. Também ficou emocionalmente muito abalada já que era pessoa de sua convivência e a doença fez com que as duas se afeiçoassem mais.

Enfim a mulher veio a óbito. Na noite após o sepultamento, Lívia, apesar de exausta, não conseguia pegar no sono. Deitada ao lado do marido, que dormia profundamente, ela sentiu sede e levantou-se para beber água. Na volta para cama, ao passar pela sala, viu estarrecida, a falecida que a observava pelo vidro da janela. Em pânico ante a visão aterradora de um cadáver, ela corre para a cama e chama por diversas vezes o marido que, em sono profundo, não desperta. Lívia se joga embaixo das cobertas, cobrindo-se até a cabeça. Mas a defunta a persegue até o leito e, com as mãos estendidas, implora por ajuda.

A partir deste episódio apavorante, as visões tornaram-se mais nítidas e freqüentes, principalmente quando a passagem para o outro lado era de alguém muito próximo, como uma pessoa da família. De uns anos para cá, a morte de alguém próximo a ela era prenunciada pela aparição de uma garotinha loira de cabelos cacheados e muito bonita, aparentando uns quatro ou cinco anos, trajando um vestido vermelho longo até a canela e carregando uma flor belíssima, semelhante a uma rosa, em sua mão. Foi assim quando faleceu a filha de um tio querido de seu marido e também quando faleceu seu sogro há quem ela muito estimava.

Os anos se passaram e a saúde de Lívia ia gradualmente se deteriorando. Já há algum tempo, porém as visões tornaram-se menos freqüentes e já não via a garotinha há algum tempo já que neste intervalo não tivera a infelicidade de perder alguém próximo. Num dia de faxina Lívia estava lavando a garagem de casa quando percebeu que próximo a ela apreciam passos de criança no chão molhado. Ficou curiosa ante aquele fenômeno porque realmente não havia nem uma criança no local, mas logo entendeu o que estava ocorrendo, pois sentiu uma presença que a muito não sentia. De súbito, veio-lhe uma pontada lancinante no peito e sua visão turvou-se como se alguém houvesse apagado a luz do mundo. Chamou por socorro e foi acudida pela vizinha que varria o quintal e por cima do muro viu que Lívia havia sentado na garagem com a mão ao peito.

Nisto, Lívia sentiu que a dor foi desaparecendo e sua visão voltou ao normal. Na verdade não se lembrava de sentir-se tão bem o quanto se sentia naquele momento. Com sua visão agora misteriosamente apurada percebeu de relance que havia alguém ao seu lado. Quando se virou, reconheceu a imagem da garotinha que já há algum tempo não via. Ela só lhe sorriu e estendeu a mão. Lígia levantou-se apoiada sentindo-se leve naquele momento. A sua frente havia uma luz brilhante como ela nunca havia visto antes e sentiu que a garotinha a puxava de encontro àquele brilho intenso que a atraia também tamanha a paz que ela sentia quando o mirava.

Olhou para trás e teve ímpeto de voltar quando se lembrou de seu esposo e filhos que percebia estar deixando, mas sabia que era preciso continuar em direção à luz, aquela luz tão bela que a conduzia por uma espécie de túnel cujas paredes pareciam cimentadas de éter apenas. Voltou-se para a garotinha ao lado que serena a olhava com compaixão e familiaridade como se a conhecesse já de muito tempo. Num instante, se achou no fim do túnel onde viajava e saindo para um lindo jardim com flores parecidas com rosas, como aquelas que a garotinha trazia consigo quando a visitava. Olhou para o seu corpo e não reconheceu mais a mulher de quarenta e tantos anos, mas ele estava transfigurado agora também numa garotinha como a que lhe dava as mãos.

A menina apanhou uma flor do jardim e lhe deu. Caminharam para junto de algumas pessoas que pareciam aguardar por Lívia. Reconheceu seus entes queridos que já haviam partido e abraçou cada um deles longamente, cheia de saudades...

Agnaldo Garcia

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Saber Viver

Não sei... Se a vida é curta
Ou longa demais pra nós,
Mas sei que nada do que vivemos
Tem sentido, se não tocamos o coração das pessoas.

Muitas vezes basta ser:
Colo que acolhe,
Braço que envolve,
Palavra que conforta,
Silêncio que respeita,
Alegria que contagia,
Lágrima que corre,
Olhar que acaricia,
Desejo que sacia,
Amor que promove.

E isso não é coisa de outro mundo,
É o que dá sentido à vida.
É o que faz com que ela
Não seja nem curta,
Nem longa demais,
Mas que seja intensa,
Verdadeira, pura... Enquanto durar
Cora Coralina