“Quem luta com monstros deve velar, para quando ao fazê-lo,
não se transforme também. Porque quando olhamos,
durante muito tempo, para um abismo,
o abismo também olha para dentro de nós.”
Friedrich Nietzsche
Na primeira vez que ela passou por mim eu a olhei bem nos olhos e ela sorriu como se eu fosse alguém familiar. Eu sorri de volta e de maneira convincente - eu imagino - já que me tornei muito eficaz na arte de encenar simpatia e alguns outros sentimentos que, embora eu saiba existirem, jamais experimentei. Há um tempo eu a venho preparando para mim. Utilizando todo o meu repertório de truques e artimanhas para conquistar a sua simpatia. Outro dia esbarrei nela sem querer e deixei cair um punhado de materiais que trazia comigo, e ela num gesto altruísta, como eu esperava, ajudou-me a recolher a papelada espalhada pelo chão. Puxando conversa, disse-lhe após algum tempo, que estava sentido com o fim recente de um relacionamento. Percebi que isto a interessou e ela esticou o assunto fazendo com que eu me abrisse e desabafasse. Assim, fui ganhando a sua confiança e nós nos tornamos íntimos de maneira que ela me confidenciou alguns pequenos segredos sobre a sua vida. Disse-me que até pouco tempo mantivera um relacionamento com um homem de sua relação de trabalho, com o qual rompera. Só omitiu o adultério de ambos, a vagabunda. Obviamente ela nem desconfia que o motivo de ter me conhecido seja estas aventuras e que em breve nós iremos estreitar este nosso curto relacionamento de uma maneira irreparável e profunda. Ela vai marcar a minha existência. Vai dar sentido a ela por um tempo ao menos, enquanto eu definitivamente darei destino à sua por causa dos atos pecaminosos que praticou. Ela é uma ninfomaníaca que está sempre enganando o companheiro com quem divide uma vida e envolvendo-se com homens de todos os tipos. Em suma, ela é pouco seletiva na escolha de seus parceiros de luxúria, ao contrário de mim que só escolho os tipos como ela para outro fim bem específico.
Eu ando entre as gentes, os humanos, falo como eles e me pareço com eles, mas não sou homo sapiens. Meu DNA foi divinamente modificado. Por isso ninguém pode ter acesso a uma amostra do meu sangue. Eu sou um anjo vingador de Deus, concebido para trazer à terra a conseqüência àqueles que atentam contra as suas leis e mandamentos. Sua espada de fogo está em minhas mãos e a mim foi dada a autoridade para trazer a justiça contra as mulheres devassas que profanando o templo sagrado do espírito santo que é o seu corpo, destroem lares através da sua concupiscência e devassidão. Ela não será a primeira a sofrer, através deste mensageiro, a ira do Divino e provavelmente não será a última. Mas a minha missão aqui na terra está terminando e eu, lavado com meu próprio sangue, partirei para a glória junto àquele de quem sou servo leal. A polícia daqui não é das mais brilhantes, mas em breve eu deixarei pistas indubitáveis e estarei pronto e esperando o primeiro e derradeiro confronto.
Por agora me concentro na minha missão atual. Minha percepção aguçada de sobre-humano a detectou com facilidade. Desenvolvi com o tempo habilidades notáveis que me capacitam e me tornam perfeito para a realização desta missão. Eu as identifico e faço uma varredura completa em suas vidas, hábitos, preferências e assim assumo o papel do homem que é capaz de atraí-las facilmente colocando-as na palma de minha mão de maneira que tenho a confiança plena delas. Elas se sentem totalmente seguras comigo e eu posso conduzi-las onde e quando eu bem quiser. Em seguida eu as levo para um local isolado e seguro para mim. Lá eu as coloco inconscientes através de um lenço com clorofórmio no nariz e as imobilizo com fita adesiva larga e realizo o ritual de purificação de suas almas, conforme instruções expressas do anjo Gabriel. Depois, eu as imolo e as abandono num local ermo de maneira que seus corpos apodrecidos sejam encontrados após alguns dias. Junto aos corpos, deixo escrito com o sangue da vítima uma tabuleta de madeira com um versículo da bíblia, que demonstra claramente o motivo pelo qual a pecadora que ali apodrece foi imolada.
Esta é minha “assinatura”, como dizem os especialistas. Aliás, eles adoram rótulos. Rio quando leio nos jornais as tentativas de traço de perfil que são feitas com relação a minha pessoa. Dizem que provavelmente eu sou um fanático religioso e que minhas vítimas, todas mulheres, tem o perfil psicológico parecido com o de minha mãe provavelmente. Pobres diabos ignorantes e imbecis. Minha mãe era uma santa criatura que nunca teve um comportamento devasso e sempre respeitou meu pai. Ela me orientou para o caminho de Deus, me fazendo desde criança ler diariamente a bíblia para conhecer e guardar os mandamentos do Senhor. A pobre teve uma vida terrível e nós, eu e meus dois irmãos também padecemos as agruras de um pai ébrio e drogado que mantinha sempre uma amante e descontava costumeiramente em nós as suas frustrações através de agressões físicas e verbais. Tenho guardado aqui em casa algumas radiografias de fraturas que eu colecionei nestes anos em que meu miserável pai esteve neste planeta. Sou grato a Deus por tê-lo levado com um infarto fulminante e ter permitido a minha pobre mãezinha um descanso nos últimos anos em que esteve comigo aqui na terra. Ele humilhava minha mãe, exibindo pelos bares e botecos da vizinhança as raparigas às quais tratava bem em contraste ao tratamento que dispensava à sua própria família. Foi por essa época que o anjo Gabriel me visitou pela primeira vez e foi gradualmente me instruindo da missão que eu deveria desempenhar aqui na terra a serviço das ordens celestiais. Assim, por ser especial, fui recrutado e treinado como soldado dos céus.
A despeito de todas as dificuldades econômicas pelas quais passei durante minha infância sempre obtive grande êxito nos estudos e com o tempo adquiri certa estabilidade econômica que me permitiu possuir os instrumentos necessários para o cumprimento da minha missão. Comprei uma propriedade rural e construí nela, com minhas próprias mãos e como anexo secreto da casa, um cômodo subterrâneo e acusticamente isolado. É aqui onde novamente trarei a profanadora que observo sorrateiro agora. Depois eu a deixarei apodrecer num terreno baldio localizado a poucas centenas de metros da casa, com mais uma passagem bíblica junto ao corpo. Novamente uma tabuleta trará gravada, junto ao corpo com o sangue dela, a seguinte inscrição: “Tiago 1:15”.
Quando consultarem a passagem na bíblia sagrada lerão o seguinte texto: “Depois, havendo a concupiscência concebido, dá à luz o pecado; e o pecado, sendo consumado, gera a morte”...
Agnaldo Garcia