quarta-feira, 27 de julho de 2011

A Morte de Teodoro

Mais ardente, mas pobre de esperança.
Mais triste? Não. Ele venceu a dor,
e resplandece no seu canto obscuro,
tanto mais velho quanto mais amor.

Carlos Drummond de Andrade


Dizem que quando a gente está para morrer, a nossa vida inteira passa diante de nossos olhos.

Então acho que de alguma forma eu ainda não havia morrido, embora contemplasse de uma forma surpreendentemente resignada a mim mesmo dentro daquele caixão.

Via-a também ali ao lado do meu corpo. Bela ainda, em seus mais de setenta verões. Não que o tempo não lhe houvesse provocado marcas. Mas cada idade tem a sua beleza. Os anos lhe conferiram certa elegância. “Era uma ruína, uma imponente ruína...”. Naquele momento toda a minha atenção de defunto era para ela. O velório ficou vazio e completamente silencioso. As velas e as lâmpadas fluorescentes se apagaram. Só havia uma luz branca que vinha de todo lugar e que iluminava perfeitamente bem o seu rosto. Eu podia observar com clareza todas as expressões de sua face e posso jurar que havia muita tristeza.

Confesso que fantasiei vê-la se jogar sobre mim no caixão escandalosamente suplicando para que eu me levantasse. Ou então que ela desmaiasse de horror diante da minha figura inerte e pálida. Desejei muito que isso acontecesse. Vi e revi aquela cena em minha imaginação. Como um diretor obcecado pela peça, compus o cenário, ensaiei bem os atores. Mas ela apenas enxugava com um guardanapo de papel as lágrimas de um choro contido e discreto. Nem ao menos um lenço de pano.

Podia sentir ainda depois de algum tempo, o calor de suas mãos quando pousou nas minhas como se fosse rezar uma prece. Talvez estivesse rezando em silêncio. Lembrei de um trecho do morto Brás Cubas no encontro fúnebre com a sua amada Virgília: “... Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos anos antes e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova...”

Não tive a sorte de Brás Cubas. Não nos amamos ela e eu...

Acho agora que a morte realmente me toma posse, creio que a hora derradeira se aproxima, pois assisto minha vida começar a passar diante de mim como um filme em 4D, com a clareza impecável que é dada aos mortos ter (?).

De súbito me vejo em um cenário conhecido da infância, há muito guardado nos recônditos de minha memória. Somos nós dois atravessando a rua juntos. Mais do que expectador, eu faço parte da cena.

Esta geração eletrônica talvez não conheça do que brincávamos naquele momento. A brincadeira chamava-se “passa-a-rua”. Uma criança tentava cercar outras cujo objetivo era atravessarem um determinado trecho de rua sem serem tocadas. Naquela época não havia tantos automóveis e o risco de sermos atropelados era ínfimo.

Eu tomo as suas mãos pequenas e delicadas e corremos juntos, escapando do perigo que tragicamente nos poria fora do jogo. Naquele instante ela me olha com ternura, sentindo-se protegida pela minha atitude. Só agora eu vejo o que a atenção distraída da infância não percebeu. Tínhamos talvez dez ou onze anos.

Outro insight, um clarão. Ainda minhas mãos estão unidas às dela, mas já estamos mais crescidos. Olho-a nos olhos. Ela desvia o olhar, tímida. Em volta todos gritam: Morango! Morango! Estamos sob um pé de uvas japonesas. Eu devo beijá-la. São as regras do jogo. Porém na hora H, um adulto irrompe entre a algazarra a puxar orelhas e trovejar em broncas. Um bonde de luz me recolhe, desço num terminal rodoviário com espinhas na cara e uma sensação de eternidade.

Alguém me acompanha, alguém está com ela. Eu não me lembro do meu amigo e nem de quem a acompanha. Só vejo o seu rosto adolescente. Ela me diz que nem sabia quem eu era e de longe me escolheu. Um jeito discreto feminino de dizer que queria “ficar” comigo. “Ficar”; não era assim que dizíamos na época, não era nem parecido com o significado de hoje... Convidou-me para ir à sua casa e eu não fui. Uma urgência qualquer da vida me chamava para casa. Ficaria para uma próxima...

Entramos no ônibus, eu e meu amigo. Desembarco numa reunião de família doze anos depois. Ela casada, filha pequena, eu casado e um filho. Abraçamo-nos saudosos pelos anos de separação. A conversa flui agradável. Nos perdemos dos outros presentes e nos achamos agora oito anos depois sentados em frente à área de uma casa. O papo continua fluindo muito agradável. Ela me fala do fim do seu casamento, das mágoas vividas, eu lhe conto sobre a minha graduação e outras amenidades da vida. Ela já é mulher bela e madura. Rojões explodem no céu e dentro de mim. Então me dou conta: finalmente cai a ficha...

Outros fogos colorem o céu e iluminam a superfície de uma piscina num lugar qualquer. É dezembro e a água é quente embora seja meia noite. Eu estou imerso até a cintura com roupa e tudo, bêbado e deprimido porque estou só e ela está com alguém a centenas de quilômetros de distância. Fico imaginando que ela esteja muito feliz naquele momento. Tenho vontade de gritar seu nome com tanta força até que meus pulmões arrebentem. Subitamente, um vórtice na água me puxa para o fundo e do outro lado, me vejo molhado batendo na janela do seu carro. Eu estou pedindo para que ela abra o vidro e fale comigo. Chove muito, estou encharcado até a alma e ela me diz numa linguagem sinalizada, que eu mal entendo, pelo vidro respingado: “Depois te ligo e nos falamos”. Não ligou.

Uma luz forte de farol alto embaça meus olhos. Já são velas que eu vejo. É o velório de um tio querido e eu choro muito. Ela chega, vejo-a assomar à porta carregando cinquenta e tantos belos anos. Nós nos abraçamos e dizemos da dor da perda. Pergunto sobre a família e ela gentilmente me faz as mesmas indagações. Olho-a sem esperança alguma. Somente com tristeza.

Olho mais uma vez para meu querido tio naquele caixão, mas já não é mais ele quem está lá. Sou eu vestindo a mortalha de madeira.

É uma estrada no tempo e eu cheguei ao ponto presente. Minha jornada findou-se aos setenta e oito anos, dois meses e dezessete dias. Tudo vai diminuindo de intensidade e energia até sumir por completo: visão, sons, lembranças.

Por fim, só o vazio...o nada.


Agnaldo Garcia

quinta-feira, 21 de julho de 2011

A Tempestade


Havia apenas um mormaço quente e o calor do sol ardendo na pele, prenúncio de um dia úmido de verão. O céu azul e limpo pela manhã, cobriu-se rapidamente de nuvens, inicialmente esparsas e brancas, depois se adensando e transformando-se em enormes chumaços azuis escuros, por causa da grande densidade de vapor. Relâmpagos passaram a riscar o céu em intervalos contínuos e a terra exalava aquele cheiro característico quando molha. O vento suave de brisa soprou mais forte trazendo respingos de chuva. Poeira e folhas de árvore espalharam-se pelo ar e o dia fez-se noite.

Eu, assustado, fechei portas e janelas aguardando impotente que o aguaceiro parasse, instinto primitivo de continuar vivo.

Choveu e muito. O granizo pipocou sobre o telhado e redemoinhos de vento retorceram árvores e destelharam casas. Jatos de água intermitentes atiravam-se pela janela respingando no sofá da sala.

Choveu assim, por horas. Depois a tempestade arrefeceu e a noite foi “endiecendo” novamente até que apenas podia-se ver um barrado azul no horizonte. Um arco-íris duplo arqueou no céu com o sol se pondo, o granizo derreteu deixando o dia mais frio que o normal para esta época do ano. Pássaros voltaram a chilrear nas árvores, sacudindo suas penas e atirando longe respingos de água. Da tempestade restou apenas uma lembrança ruim e um sentimento de alívio...

No início, logo após a tormenta, eu me acostumei a olhar para o céu sempre remoendo a procura de indícios que me mostrassem quando outra adviria sobre mim derramando sua fúria, instituindo caos à quase calma reinante, subvertendo a ordem dos astros e trazendo escuridão quando deveria haver luz. Eu buscava amedrontado estes sinais. Uma formação de nuvens, cirros-estratos, cúmulos nimbos ou outras, cujos nomes em latim eu esqueci como relacionar às formas. Observava à tarde se o céu se cobria de vermelho no poente ou molhava o dedo entre os lábios e o estendia para cima procurando um vento que costuma soprar lá do sul e trazem as frentes frias. Assim eu poderia me precaver. Talvez, quem sabe...

Eu queria acreditar que não haveria mais tempestades como àquelas, inundando o meu mundo. Trazendo confusão à calmaria. Que só restariam os resquícios e mesmos estes, aos poucos deveriam desaparecer com o passar do tempo, tornando-se raras lembranças como objetos numa caixa velha de papelão que vez ou outra fuçamos saudosos.

Eu queria acreditar que outras não virão. Derrubando árvores, destelhando casas e inundando as ruas. Mas no fundo eu sei. Aquela primeira tempestade foi só uma conseqüência menor de uma mudança climática irreversível. Que outras maiores ocorrerão trazendo mais destruição. O que me resta é segurar firme no barco do hoje e seguir vivendo um dia de cada vez com a pouca fé que ainda me resta. E agradecer a Deus quando me levantar de manhã e o sol estiver brilhando num céu azul e só soprar uma brisa fresca, daquelas que secam o suor que teima em escorrer pela face.

Hoje só há a calmaria.

Aquela típica mansidão dos elementos que prenunciam uma terrível tempestade...


Agnaldo Garcia