Conta uma lenda cretense cuja narração havia se perdido nas areias do tempo e que recentemente foi descoberta em fragmentos de pergaminhos, que no princípio de tudo os homens eram seres etéreos e eternos feitos de pura energia. Neles, os gêneros masculino e feminino fundiam-se num só ser poderoso e feliz por sua completude. Estes seres possuíam todas as qualidades de ambos os sexos.
Moviam-se pelos ares ou através da matéria felizes e exuberantes em sua forma energética. Não sentiam solidão, pois se autocompletavam e viviam satisfeitos com sua condição andrógina. O fato de estarem fundidos lhes conferia pleno domínio dos sentidos e ampla vivacidade.
Tais condições acenderam a ira e inveja dos deuses do Olimpo que foram queixar-se a Zeus ou Júpiter o criador destas majestosas criaturas. Todos os homens possuíam na plenitude todas as características valorizadas pela cultura helênica. Beleza, inteligência, sabedoria e bondade abundavam neles. E os deuses que eram conhecidos cada um por uma qualidade destas das quais se sobressaíam, argumentaram com o soberano dos deuses que os humanos assim como se encontravam eram em sua essência mais poderosos que eles próprios e poderiam sobrepujá-los em carisma ante os outros habitantes da terra e assim se tornariam objeto de adoração substituindo aos deuses em seus corações. Naquela época outros seres como elfos, sátiros, musas e centauros povoavam a terra.
Houve então uma assembleia no Olimpo para decidir o futuro da humanidade, onde se reuniram os doze principais deuses. Zeus a cabeceira deu voz a todos que falassem. Áries, o deus da guerra, manifestou-se primeiro e propôs que Zeus permitisse que sobre o seu comando, os titãs fossem libertados e despejassem sua fúria contra a terra destruindo os humanos, mandando-os para o interior do planeta aos cuidados de Hades o guardião do inferno. A bondosa Atena, a deusa da sabedoria e Afrodite, a deusa da beleza e do amor, intervieram com veemência contra a trágica ideia de Áries convencendo ao rei dos deuses que a humanidade não era merecedora de tão abominável destino. Depois de muita discussão entre pequenos senões acabou por prevalecer a ideia de Hera, a influente esposa de Zeus.
Foi decretado que a humanidade não deveria rivalizar em poder com os deuses e para isto algumas providências seriam tomadas.
Zeus com seus raios poderosos deveria cortar estes seres ao meio, separando-os em duas partes: a masculina e a feminina deveriam subsistir em separado. Para que essa condição fosse perpétua, Hefesto deveria fabricar-lhes corpos físicos aos quais se prenderiam suas almas de modo que não pudessem continuar vivos sem a casca de carne e nem juntar-se, senão em breves momentos de conjunção espiritual. Também foi abreviado o tempo de existência destes invólucros corpóreos de modo que estes seres perdessem a memória de eternidade e revivessem em cada existência sem lembrança alguma da ocupação anterior. Quanto às qualidades, elas deveriam ser limitadas para cada ser, como aos deuses, tornando-os notáveis em apenas algumas, de modo que cada uma de suas almas divididas recebesse uma porção delas. Não satisfeita ainda, à deusa Hera, vilã da humanidade, sugeriu com a força de sua posição de esposa de Zeus que as almas gêmeas raramente deveriam se reconhecer mutuamente de modo que o encontro de dois destes seres se tornassem eventos raros e fortuitos.
Assim foi...
Está explicado então: a culpa é dos deuses de tantos desencontros. Por tanta gente no mundo e este sentimento absoluto de existir só que experimentamos às vezes mesmo abraçados e protegidos pelos nossos entes mais queridos. Esta sensação de que falta um pedaço, uma parte tão importante de nós, que alguns buscam mesmo sem esperança de êxito por toda uma vida, enquanto outros fingindo não se importar desistem de procurar dizendo-se felizes em estar sozinhos mesmo sem disfarçar um semblante amargo de quem é pedaço de si mesmo apenas. Outros tentam acomodar-se em partes não compatíveis a si como a criança inexperiente que insiste encaixar peças erradas de um quebra-cabeça.
Bendizei então a vossa sorte se encontrardes alguém que vos encaixe à alma...
Terás encontrado a vossa alma metade, ao menos por um breve período durante esta curta existência. Para a contrariedade dos deuses.
Agnaldo Garcia