segunda-feira, 10 de maio de 2010

O Náufrago

Josué levantou-se do tronco próximo a fogueira que havia feito para encarar a escuridão da noite estrelada e sem lua. Algumas nuvens bem esparsas, coloridas de amarelo-vermelho-roxo davam um aspecto muito bonito ao pôr-do-sol daquele dia. Caminhou até o limite onde as ondas quebravam na praia como que para admirar mais de perto o sol fritando a água no horizonte. A água fria do mar quase tocava os seus pés e o vento, que vinha da praia para o oceano, soprava em suas costas e fazia o seu camisolão branco de mangas longas agitar como uma bandeira tremulando. Sentiu um arrepio de frio e instintivamente se reaproximou do calor da fogueira que crepitava com o estalar da madeira e emitia pequenas fagulhas que impulsionadas pelo vento iam se suicidar nas minúsculas gotículas de água do mar. No céu algumas estrelas já mostravam um brilho tímido, como se pedissem passagem ao sol que já se retirava. Suspirou de saudade de coisas que não se lembrava, mais tinha certeza: estavam presas em algum arranha-gato de sua mente.

Tentava buscar na memória quando e como viera parar ali, mas o fato era que não conseguia lembrar-se de nada que deveria ter ocorrido neste passado recente, que explicasse o fato de ele ter acordado naquela linda ilha deserta, deitado de barriga para baixo, trajando aquela mesma roupa que estava usando agora, e com o rosto ao chão encostado em uma das faces que tocava a areia. Levantou-se confuso e desorientado ante a paisagem que se apresentava. Teria sido deixado ali por alguma embarcação? Por que motivo? Talvez tivesse nadado até a praia ou se agarrado a alguma parte de um navio que afundou ou um avião que poderia ter feito um pouso forçado na água. “Não... Não com esta roupa”, pensou. Ponderou também que se tivesse havido um naufrágio deveria haver algum resquício do acidente na praia, mas nunca conseguiu achar um indício de que isso tivesse ocorrido. O fato é que, simplesmente, não se recordava de nada até antes do momento em que acordou embaixo daquelas palmeiras na praia, já com o sol no meio do céu.

Também não conseguia precisar quantos dias estivera ali, náufrago naquela ilha. Mas não sentia angústia ou tristeza, apenas saudade dos entes queridos que deixara em alguma direção daquela imensidão de mar. Os pés pisavam tranquilos os finos grãos de areia da praia e o sol brilhava calma e suavemente. O calor era amainado por uma brisa mansa que soprava do mar pela manhã. O branco alvíssimo da areia que fazia contraste com o mar de um azul que ele não vislumbrara nem em comerciais de televisão trazia uma paz e calma que ele não conseguia descrever ou explicar. Numa incursão pelo meio da ilha ele descobriu uma pequena queda d’água que formara uma piscina natural de água fresca onde ele podia se banhar e matar a sede. Enfim, achava-se se aprisionado num lugar paradisíaco onde passava os dias matutando sobre a sua vida e o tempo parecia fluir peculiarmente descompassado.

Assim, absorto em seus pensamentos, Josué nem percebeu quanto se sentou no tronco próximo a fogueira e já mirava o infinito acima, porque o sol já se havia posto no horizonte, deixando apenas um borrão de luz que ia atenuando e dando lugar a total escuridão da noite. Deitou-se para poder admirar melhor aquele céu, que a esta altura ia se borrando de milhares e milhares de estrelas, formando um espetáculo inimaginável para quem sempre viveu na poluição das cidades. Seu corpo foi tomado de um torpor que quase não o permitia sentir as extremidades das mãos e dos pés. Decidiu que iria dormir ali mesmo próximo a fogueira e deitado, jogou sobre si uma manta de lã que estava dobrada e aquecida próxima da fogueira. Diante daquele espetáculo, em meio aos meteoros que riscavam o céu arremetendo contra a terra, sentiu-se só. Suas lembranças voltaram-se então para a sua família. O que estariam fazendo neste momento sua mulher e filhos? Estariam à sua procura? Será que pensavam nele naquele momento? Lembrou-se da mãe velhinha e do seu pai e sobrinho que haviam falecido já há algum tempo. Sentiu saudades e os olhos marejaram.

Abstraído assim em pensamentos, ignorava completamente os sons que a natureza fazia à sua volta até que, de sobressalto, percebeu um estalo que ressoava próximo a ele ao lado esquerdo depois da fogueira, onde se encontravam algumas folhas mortas de palmeira. Girou rapidamente a cabeça para onde tinha ouvido o estalo e quando sua visão foi se acostumando com o ofuscamento causado pela fogueira percebeu, com espanto, um vulto que parecia caminhar lentamente em sua direção. Num impulso saltou rapidamente e postou-se ereto, de frente para o vulto. Agora percebia claramente tratar-se de uma pessoa, trajando calça e camisa branca como a areia da praia. Notou também que andava descalça. Quando os olhos se adaptaram de vez ao contraste da luz da fogueira com a escuridão, pode ver o rosto de um rapaz. Reconheceu de pronto Rafael, o sobrinho querido que havia falecido num acidente a poucos anos atrás. Estranhamente não sentiu medo, caminhou ao seu encontro para lhe dar um abraço. Sentiu vertigem e tonto caiu na areia, de frente para o mar, aos pés do rapaz que olhava agora fixamente para ele e pronunciou numa voz familiar, que já não ouvia há algum tempo, quase sorrindo:

___Tio, você precisa voltar, ainda não chegou a sua hora.

Ainda tentava entender o significado daquelas palavras, quando atônito olhou para o mar a sua frente. A paisagem ia gradativamente se modificando. O azul do céu transformou-se numa parede de tijolos e o branco da areia em um desalinhado lençol branco de hospital. O rosto à sua frente sorridente já não era mais o do sobrinho falecido, agora fitava sua filha Rebeca que com espanto alertou o resto da família no quarto que o pai acabara de retornar do coma.

Compreendeu naquele instante que havia acabado de viver uma experiência de quase morte.

"Para meu querido tio Sidiko Garcia, poeta e compositor, que sofreu um acidente de automóvel anos atrás e viveu experiência semelhante"

Agnaldo Garcia

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